Um poeta visionário do Céu e do Inferno

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"Há três meios que o homem pode utilizar para falar com o Paraíso a poesia, a pintura e a música." Esta ideia acompanhou o poeta William Blake (1757-1827) ao longo da vida. Jamais a revolucionária coerência do seu proceder desvirtuou a afirmação, nem a criação artística esqueceu o princípio.

As três artes, as duas primeiras porque as praticou, e a terceira que amou, estão enraizadas na sua obra antagónica e intuitiva, cintilante e arbitrária, ousada e profunda, surgida numa época tão rigidamente racionalista como foi a do Século das Luzes. Não que Blake recusasse a razão humana, mas, de certo modo, considerava-a insuficiente como forma de conhecimento a "verdade" não podia, na sua opinião, senão emergir da visão profética. Por isso, o poeta, pintor e gravador inglês procurou-a e cultivou-a pela leitura da Bíblia e de textos de visionários como Jacob Boehme ou Swedenborg.

Nada melhor para apreender este seu mundo de "imaginação & visão" do que a leitura de Sete Livros Iluminados, dado à estampa pela Antígona com tradução e introdução assinadas por Manuel Portela. Trata-se de uma primeira e bela edição portuguesa integral de sete poemas originalmente gravados, impressos, iluminados e publicados por Blake entre 1788 e 1795 Todas Religiões São uma Só; Não Há Religião Natural; O Livro de Thel; América uma Profecia; Europa; Uma Profecia, A Canção de Los e O Livro de Los. Nesta obra bilingue reproduzem-se também 32 páginas de gravuras a cores.

Na impossibilidade de análise exaustiva de cada um dos poemas, importa referir que Blake, além de poeta moderno (um dos precursores da moderna anarquia), foi um visionário, não no sentido figurado do termo, e um primitivo.

Sem formação académica, culturalmente autodidacta, o autor d'O Casamento do Céu e do Inferno - que considerava Bacon, Newton e Locke uma falsa trindade do racionalismo inglês -, escrevia e desenhava com a força persuasiva de uma revelação, vendo-se como um descobridor de verdades eternas, colonizador de terras anunciadas pela Bíblia, Shakespeare, Milton, Dante e Miguel Ângelo, pela alquimia, a cabala hebraica e a astrologia. A tudo isto se acrescenta a arquitectura sonora da obra de um criador iconoclasta. Não que esta obedeça a um rigoroso estudo da harmonia ou de outra disciplina mais ou menos estabelecida. Tratava-se, para Blake, de aceder a uma linguagem superior, ao entendimento da "música das esferas".

Os livros iluminados de Blake, também um libertário, constituem uma cosmogonia povoada, diz Manuel Portela, por "deuses, demónios, profetas, heróis, plantas, insectos e animais nas suas muitas figurações masculinas e femininas". Nesse sentido, uma das riquezas deste volume passa pela publicação de um glossário esclarecedor sobre personagens como Thel, Los ou Urizen, que correspondem a vários princípios, forças e estados de consciência, com influência das mitologias religiosas. Cumpre-se, assim, uma função essencial da edição que passa não só pela divulgação das obras mas por um rigoroso enquadramento das mesmas.

E se Todas Religiões São Uma Só e Não Há Religião Natural podem ser consideradas obras de transição nas quais o poeta afirma o "génio poético universal", O Livro de Thel inaugura uma forma de escrita simbolista. América, por exemplo, entendendo a história de forma mitológica, sublinha o respeito pela liberdade contra o despotismo e reflecte sobre o mal e a providência divina. E O Livro de Los reinventa o mito da criação do mundo, da escrita, de Deus. Para Blake, toda a coisa criada tinha dois corpos o visível e o invisível.

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