"Obra tantas vezes dissimulada - reservatórios onde se acumulam águas frescas repousam sob relvados; condutas, válvulas, manchões, abrigam-se sob as calçadas dos caminhos que todos os dias cruzamos; poços de águas profundas, eremitas alinhados nos areais do Douro, à vista de todos e vistos por ninguém." Uma faceta da cidade do Porto que muitos desconhecem, referida por Alexandra Agra Amorim e João Neves Pinto no livro Porto d'agoa, que descreve uma época em que os túneis da cidade eram essenciais para o abastecimento. É este espólio histórico, um mundo subterrâneo que palpita sob o frenesim das ruas por onde passamos todos os dias, que vamos conhecer..Os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento (SMAS) são a entidade responsável pela manutenção dos túneis da cidade e pela organização de visitas guiadas pelos subterrâneos do Porto. Muitos são os mananciais que abasteciam a cidade de água (ver página seguinte), mas o mais importante era o manancial de Paranhos, o único que actualmente pode ser visitado. O percurso, de aproximadamente três quilómetros, inicia-se na Praça Nove de Abril (Jardins da Arca d'Água) e termina cerca de duas horas e meia depois, na Praça do Coronel Pacheco.."As visitas começaram há seis, sete anos", refere o funcionário dos SMAS encarregue das marcações, Paulo Carvalhosa. "Têm de ser marcadas com bastante antecedência", até Setembro já está a agenda cheia, ressalvando-se que durante o mês de Agosto não há visitas. "Só para Setembro" é que ainda há hipótese de marcar uma visita aos subterrâneos do Porto, sempre para grupos de 15 a 30 pessoas. Depois de ser feito o pedido para a visita, é enviada a confirmação pelos SMAS, na qual se adverte sobre o material necessário"galochas, lanternas e casaco impermeável". Os SMAS fornecem os capacetes, elemento de segurança obrigatório. As visitas são gratuitas, mas o grupo tem de fazer um seguro de acidentes pessoais e apresentar o comprovativo no dia da visita. São muitos os grupos interessados: desde grupos de amigos, escuteiros, associações e empresas até bancos, escolas, universidades, câmaras. Uns tomam conhecimento dos túneis através do site www.smasporto.pt, outros pelos relatos de amigos ou através de reportagens que leram..O DN aproveitou a boleia de um grupo de 25 pessoas para visitar o manancial de Paranhos. O ponto de encontro é no Jardim da Arca d´Água. Ana Ribeiro, uma das participantes, mostra-se entusiasmada com a visita "Pelo que ouvi, é um passeio muito interessante." Felipe Duarte e Ana Malta, outros dois elementos do grupo, estão também na expectativa: "vamos lá a ver os perigos que vamos encontrar nos subterrâneos?" Dois funcionários dos SMAS e o responsável pela organização da visita, Paulo Carvalhosa, acompanham o grupo. Primeiro há que verificar se todos têm o equipamento indispensável para descer aos túneis. Um dos guias, Jaime Pacheco, avisa o grupo sobre os cuidados a ter: "nunca tirar o capacete, cuidado com os obstáculos, ouvir e passar as informações". São 10.00, chegou o momento de iniciar a visita à cidade escondida. O grupo mostra-se ansioso e com boa disposição à mistura. Desce-se as primeiras escadas e começa uma viagem no tempo, rumo à época em que estes túneis, cuja construção data de 1597, abasteciam de água as fontes e chafarizes do Porto. Um dos guias vai à frente, o outro vai na cauda do grupo, para assegurar que ninguém se perde nem fica para trás. Durante o percurso dão informações diversas: onde se situam as nascentes de água, quais as ruas que estamos a percorrer, quais as precauções que é necessário tomar, porque se a pessoa não tiver cuidado "é fácil ocorrer um acidente". Há uma carrinha em todos os pontos de entrada e saída para quem quiser desistir. Mas para já ninguém quer sequer ouvir falar nisso. .O percurso começa no Jardim da Arca d'Água, a zona melhor preservada e mais bonita, também conhecida como Arca das Três Fontes, por serem três as nascentes de onde a água brotava. Nascentes que "envolvem todo este caudal e nos acompanham ao longo do percurso", revela Jaime Pacheco, que chama ainda a atenção para os túneis, que na altura "foram escavados à mão", para conseguir fazer chegar à cidade "as primeiras águas a servir os habitantes do Porto". Água que actualmente não tem qualidade e é imprópria para consumo, embora haja "pessoas que têm direito à água, devido a escrituras e registos da época", e que a utilizam "para lavagens". A sala da Arca d'Água encanta os visitantes. Para lá chegarmos temos de saltar de pedra em pedra, a única forma de mantermos as galochas enxutas. Saindo da zona que envolve o jardim, o percurso não é tão fácil nem agradável e as primeiras dificuldades começam a surgir paredes estreitas, fraca iluminação, um percurso pouco recomendável para espíritos menos aventureiros e com medo de espaços fechados. A expectativa criada à partida é defraudada "a partir do momento em que se entra pelo túnel fora: deixa de ser romântico e passa a catacumba", confidencia João Teixeira, um dos participantes. Os guias dão instruções: "baixem a cabeça", "cuidado com os ganchos e abraçadeiras que seguram os cabos", "agora vão encontrar um desnível", "cuidado com os buracos". Alguns começam a queixar-se do "ritmo rápido" que obriga a "mini-maratonas" para se encontrarem com os colegas que vão mais à frente; uma das participantes mostra-se ansiosa em certas partes do trajecto, "mais sinuosas e escuras". Nada que não se ultrapasse. "É rara a pessoa que desiste", diz Jaime Pacheco; e quando o fazem, "é por claustrofobia ou por não gostarem do passeio." .Após duas saídas breves para descansar um pouco, chega-se à zona da Lapa, onde se dá o encontro do manancial de Paranhos com a mina de Salgueiros. O troço que temos vindo a percorrer acaba subitamente e temos de sair, "por causa das obras do metro", explica Jaime Pacheco. Segue-se uma pausa para retemperar forças. Alguns elementos do grupo parecem mais cansados, outros continuam animados, mas ouvem-se as primeiras queixas "algumas partes do túnel podiam estar melhor preservadas", afirmam ao DN. Voltamos a entrar no túnel, um troço dificultado pela escuridão e pela lama, que se cola às galochas. Ao longo do trajecto encontram-se placas que informam da localização: R. Nove de Abril, Travessa de S. Diniz, R. Serpa Pinto, R. dos Burgães, R. dos Bragas..Duas horas e meia depois, a visita acaba na Praça do Coronel Pacheco, junto à fonte do Largo Alberto Pimentel. É hora de lavar as mãos e a cara, entregar os capacetes, tirar impermeáveis e galochas e arrumar lanternas. Todos parecem ter gostado. "O grupo era animado", diz Ana Malta, que tem no entanto algumas críticas a fazer "o percurso era sempre igual, podia estar melhor iluminado e podia haver mais saídas." Devem "acautelar melhor alguns pormenores de segurança e criar condições para que se consiga fazer as visitas de outra forma", salienta João Teixeira. Nomeadamente, "ter mais iluminação", haver "mais paragens" e contratar "mais pessoas, a tempo inteiro, para se fazerem grupos mais pequenos". Claro que tudo isto custa dinheiro? "É preferível pagar nem que seja simbolicamente para manter este circuito", que "turisticamente pode ser melhor explorado, pela sua componente histórico-cultural". "É interessante ver o percurso que a água faz pela cidade. Para quem gosta de aventura, é aliciante, mais pelo desafio e pelo espírito de grupo".