Um direito de pernada nunca desaparecido

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Nos últimos dias, um texto de um médico, de pública fama, publicado neste jornal, não indignou ninguém. Talvez ninguém o tenha lido, mas relatava o facto de que ele, Eduardo Barroso, enquanto dirigente de serviços de saúde no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que ainda é, e professor de medicina numa universidade pública, tinha colocado os familiares de seus colegas médicos à frente em listas de espera do SNS, o que lhe parecia aliás um facto pacífico, inquestionável e nada exótico. Limitou-se, usando para tal o SNS, a "demonstrar-lhes a minha amizade, consideração, respeito e gratidão". Há quem ofereça garrafas de vinho ou dê um abraço. Há quem, podendo, esqueça a existência de listas de espera para cirurgias sem custos para o cliente.

Teve também uma intervenção num canal de televisão, onde disse, com toda a clareza, a propósito da recente questão do tratamento de crianças no Hospital de Santa Maria e da alegada interferência do Presidente da República no tema, que, como diretor, nunca prescreveu medicamentos... e que "tinha lá uns escravos" para o fazer. Afinal, como disse, "um filho é um filho" e, enfim, "um médico não é um funcionário público", o que lhe surge, aparentemente, como condição menor.

Eduardo Barroso será um médico qualificado e distinto. Mas, em 2023, o que é isto? E isto é o pensamento, límpido, de quem, cruzando regimes políticos e contextos diversos, se sente dono do seu sistema, como tantos outros, vivendo num olimpo elitista em que, servindo-se dos contribuintes e, no caso, de doentes sem alternativas reais, constrói uma narrativa justificativa, feita de ego e de falta de contraditório dada a nossa pequenez e dependência.

Na verdade, o retrato do que sempre fomos: o país dos que acedem, conhecem e resolvem; e o país, mais numeroso, dos que dependem, esperam e aceitam. E que se cruzam apenas por caridade demasiadas vezes.

Nada disto tem que ver com ditadura e democracia, com PSD e PS (ou PCP ou Chega), com serviços públicos ou oferta privada. Isto tem que ver,

estruturalmente, com educação, critério e dignidade. E com a falta de uma cultura genuína e sã de serviço público, que décadas de ditadura e décadas de democracia não conseguiram gerar. E esta lógica senhorial, que não é apenas visível nos serviços públicos de saúde, vinda de um tempo em que apenas a elite mandava e em que os filhos da elite maioritariamente acediam às qualificações e aos lugares a que era suposto chegarem, é absolutamente perversa. A diluição do que é meu e do que é comum, a diluição do que é um direito e do que é um serviço, a diluição do que é possível e do que é legítimo.

Vamos admitir que retrocedemos três séculos e voltamos a um tempo de venalidade dos ofícios públicos. Vamos imaginar que a lei passa a permitir que médicos em instituições públicas passam a ter o direito a escolher 5 doentes por ano para tratarem ou operarem, com prioridade pessoal sobre os demais. E que podem cobrar-se diretamente a esses doentes, seja em dinheiro, seja em gratidão eterna, em missas rezadas por sua alma e saúde ou apenas através do simples inchamento da sua reputação pessoal, alimentada à mesa de diversos jantares. Pareceria escandaloso, não? Não estou é absolutamente seguro de que isto não exista.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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