Um clássico para acabar com o classicismo

O Grande Magnate foi o derradeiro filme de Elia Kazan, tendo como inspiração The Last Tycoon, o romance inacabado de F. Scott Fitzgerald - estreou-se há 40 anos.
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Quando se recordam as dramáticas transformações de Hollywood ao longo da década de 70, é habitual citar Tubarão, de Steven Spielberg, estreado no Verão de 1975, como fundamental charneira.

Assim foi: a perturbante parábola do medo colectivo "inventou" o conceito de blockbuster que, para o melhor e para o pior, se impôs contra o classicismo (artístico e financeiro) do cinema americano. Num certo sentido, pode dizer-se que a morte simbólica desse classicismo ocorreu no Verão seguinte com O Grande Magnate, de Elia Kazan, filme tão prodigioso quanto esquecido - estreou-se no dia 26 de agosto de 1976, faz hoje 40 anos.

No contexto em que surgiu, já quase não havia produtores que arriscassem num projeto como O Grande Magnate, para mais baseado no admirável The Last Tycoon, romance incompleto e final de F. Scott Fitzgerald (1896-1940) publicado postumamente. Foi preciso alguém como Sam Spiegel (1901-1985), um produtor "à moda antiga", para concretizar um filme tão distante dos padrões de fabricação, espetáculo e marketing que estavam a transfigurar Hollywood.

Na sua autobiografia (A Life, ed. André Deutsch, 1988), Kazan recorda as hesitações com que encarou o projeto, até porque Spiegel, conhecido pelas suas perversas manobras de manipulação, já tentara contratar outro realizador, Mike Nichols, que se teria afastado de modo mais ou menos conflituoso. O certo é que tinha sido com Spiegel que Kazan concretizara Há Lodo no Cais (1954), com Marlon Brando, filme há muito consagrado no panteão de Hollywood.

A ironia quase macabra de tudo isto surge redobrada pelos ecos simbólicos da temática de O Grande Magnate (adaptado ao cinema pelo dramaturgo inglês Harold Pinter). A história que nele se conta passa-se no coração de Hollywood, através de uma teia de relações profissionais e amorosas que, com metódico desencanto, expõe as tensões internas da "fábrica de sonhos". Mais do que isso: a personagem central do produtor Monroe Stahr foi criada por Fitzgerald como um "duplo" de Irving Thalberg (1899-1936), por certo a personalidade de Hollywood que mais exemplarmente pode simbolizar a mitologia dos "motion pictures". Detalhe precioso: Em 1963, um ano depois de ter produzido Lawrence da Arábia, Spiegel recebera a mais prestigiosa distinção honorária atribuída pela Academia de Hollywood. Qual? O Prémio Irving Thalberg.

Nas margens de Hollywood

Kazan faleceu no dia 28 de setembro de 2003, contava 94 anos. O certo é que O Grande Magnate acabou por ser o seu derradeiro trabalho de realização, tendo vivido até ao fim assombrado pelas memórias do seu comportamento durante o "maccartismo", quando, perante a Comissão para as Atividades Antiamericanas, identificou algumas figuras do meio artístico que, tal como ele, tinham militado por ideais comunistas. Em 1999, a comunidade de Hollywood mostrou-se drasticamente dividida pelo facto de a Academia o ter agraciado com um Óscar honorário - na cerimónia, houve mesmo uma clara divisão entre os que se levantaram para aplaudir e os que permaneceram sentados, em silêncio.

Voluntariamente ou não, Kazan tinha-se transformado num autor algo marginal. O seu filme anterior, Os Visitantes (1972), fora mesmo fabricado em regime de austera independência de produção, tendo ficado para a história como um título pioneiro na abordagem dos traumas da guerra do Vietname. Com O Grande Magnate, voltou a trabalhar com sofisticados recursos clássicos, além do mais dirigindo um elenco que combinava Robert De Niro (no papel de Stahr, no mesmo ano em que fez Taxi Driver) com Jack Nicholson (consagrado um ano antes com Voando sobre um Ninho de Cucos), a jovem e talentosa Ingrid Boulting, a estreante Theresa Russell e ainda uma impressionante galeria de veteranos de Hollywood, incluindo Tony Curtis, Robert Mitchum e Ray Milland, além da francesa Jeanne Moreau.

No ano seguinte, viu-se como Hollywood estava mesmo a mudar, com o Óscar de melhor filme a ser atribuído a... Rocky! Digamos, para simplificar, que Sylvester Stallone não teve a culpa.

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