O menos que se pode dizer da filmografia de Jean-Marie Straub (1933-2022) e Danièle Huillet (1936-2006) é que nela deparamos com duas interrogações tão primitivas quanto fascinantes. Em primeiro lugar: como é que o cinema vê o mundo? Ou melhor: como é que o mundo se refaz, e repensa, através do cinema? E ainda: o que é "isso" de ser espectador de filmes? São perguntas cujas certezas e dúvidas podem ser reavaliadas na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, na Fundação de Serralves, no Porto: a partir de hoje, será possível conhecer a obra integral de Straub/Huillet, a par de mais alguns filmes que a abordam - o ciclo prolonga-se por cerca de quatro meses, terminando a 28 de janeiro de 2024; a exposição que lhe serve de enquadramento estará patente até 31 de março..A sessão inaugural (hoje, às 17h00) dá a ver os dois primeiros filmes do casal, exemplares dos tempos de "novas vagas" que se viviam na Europa, embora distinguindo-se já por um individualismo (a dois) que os afastaria sempre de qualquer "tendência" ou "movimento". São eles: Machorka-Muff (1962), retrato sarcástico de um antigo oficial nazi, e Não Reconciliados (1964-65), reflexão também enraizada nas convulsões da história alemã dos século XX, abrindo para o conhecimento da violência como componente visceral de toda a história humana - como se diz no subtítulo, "só a violência ajuda onde a violência reina"..António Preto, diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira e curador da exposição que acompanha a retrospetiva, fará uma apresentação do ciclo nessa primeira sessão - aliás, todas as sessões serão apresentadas por convidados. O programa é completado por diversas visitas guiadas e conferências. Será também editado um livro bilingue (português/inglês), com vários ensaios originais, incluindo a transcrição de uma conversa de Straub e Huillet com três outros cineastas: Marcel Hanoun, Robert Kramer e Manoel de Oliveira..Como António Preto recorda num texto de introdução ao universo dos Straub, o seu trabalho suscita diversas aproximações à obra de Manoel de Oliveira - há mesmo a sugestão de uma cumplicidade "enraizada" no facto de Oliveira ter lançado o seu Acto da Primavera em 1963, em paralelo com os primeiros títulos dos Straub, afirmando o mesmo empenho na defesa do valor primordial das palavras na definição dos destinos humanos e, é caso para dizê-lo, na sua teatralidade. António Preto faz mesmo notar a importância das "lições de história" do cinema de Straub/Huillet (expressão que não podemos deixar de associar ao didactismo de Jean-Luc Godard), "dando forma a uma visão materialista da luta de classes, a uma impiedosa crítica do capitalismo, do progresso e do racionalismo triunfante"..Esta é uma viagem cuja singular energia se condensa no título do evento: "Na cratera do vulcão". Trata-se de uma expressão que remete para A Morte de Empédocles, o poema de Hölderlin que os dois cineastas filmaram em 1986: caído em desgraça, escolhendo a natureza contra a política, o filósofo pré-socrático Empédocles suicida-se lançando-se na cratera do vulcão Etna ("cumprindo enfim a sua unificação trágica com o mundo", escreve António Preto). Afinal, dizia Straub, citando o poeta e ensaísta Charles Péguy, "fazer a revolução é também repor no lugar coisas muito antigas, mas esquecidas.".Para revisitar as heranças e utopias de tudo isto, Straub/Huillet lidaram, por exemplo, com a música de Bach (Crónica de Ana Magdalena Bach, 1967) e Schönberg (Moisés e Aarão, 1974), a escrita de Brecht (Lições de História, 1972), a ficção de Kafka (Relações de Classe, 1983), a pintura de Cézanne (Diálogo com Joachim Gasquet, 1989), ou um romance de Elio Vittorini (Sicília, 1998). Aliás, o tempo de montagem deste último filme é assunto do belíssimo Onde Jaz o Teu Sorriso? (2001), de Pedro Costa, a exibir a 28 de janeiro - nesse mesmo dia, terá lugar a derradeira conferência do programa, com Pedro Costa e António Preto..dnot@dn.pt