Um 'nico d'obra' com 50 anos de carreira

Actor, argumentista, produtor, realizador. No teatro, na televisão, no cinema. Com comédia, drama, 'talk shows'.  Em meio século, fez de tudo um pouco
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Q uis ser pirata, piloto de aviões, oficial do Exército, para agradar ao avô, seguir a carreira diplomá-tica, para agradar ao pai. Esco- lheu o Conservatório porque queria ser cantor de ópera. Francisco Nicholson, que vivia no mesmo prédio de Nicolau nesta altura, recorda a sua voz belíssima: "Os alicerces do prédio abanavam com as suas vocalizações." Nicolau chegou a ir para Itália fazer um workshop de canto, mas, entretanto, começou a estudar teatro como complemento da ópera e, aos 20 anos, percebeu que o melhor seria mudar de carreira. "A ópera exige uma disciplina física e mental que eu não tinha, tive a noção exacta de que não iria conseguir fazer aquilo." Fez--se actor. E depois também argumentista, realizador, produtor, apresentador. De teatro, de televisão, de cinema. "Já fiz de tudo um pouco." Comédia, drama e vaudeville, filmes, sitcoms, novelas, concursos e talk shows.

Foi há precisamente 50 anos que pisou um palco "à séria", como estagiário, na peça Leonor Telles. Fazia uma data de pequenos papéis. "Fui para lá alegremente e, de repente, vi-me no meio de uma série de pessoas que eu admirava e que julgava inatingíveis, como o Ribeirinho, a Carmen Dolores. Estava perfeitamente encantado. Passava o dia de boca aberta a olhar para eles e pelo meio ia fazer umas coisas ao palco. Umas bem, outras mal."

Alentejano, de Serpa, mudou-se para Lisboa com os pais aos nove anos. "Aquilo que me meteu mais impressão foi a falta de espaço, o finito dos horizontes, e viver num prédio. Sempre tinha morado numa casa, com porta para a rua, jardim." Foi um choque. Felizmente estava lá o avô. "Era uma pessoa fantástica", recorda. "Sonhávamos juntos em conversas longuíssimas, fazíamos viagens tremendas, foi ele que me ensinou a ler Júlio Verne e muitas outras coisas, o que mitigou um bocado aquela sensação de claustrofobia que eu sentia." Em miúdo era "um bocado bicho-do-mato", na juventude soltou-se mas manteve a timidez: "Ainda hoje, se tiver que entrar num café cheio de gente, vou de cabeça baixa e ponho-me num canto." Ser actor, acredita, também é uma maneira de escapar a esta timidez: "No palco posso fazer tudo porque não sou eu, é outra pessoa. Só não me peçam é para me misturar com o público, andar no meio dos espectadores. Há uma relação, mas eu estou no palco e eles na plateia."

A primeira comédia em que participou, já como profissional, no Teatro Monumental, em 1960, foi um flop. "Não sei se foi por eu ter entrado", brinca. "Esteve nove dias em cena." Apesar disso, a partir daí, tornou-se especialista em fazer rir. "Era delicioso ver um teatro como o Capitólio, com 1200 lugares, completamente cheio. Uma gargalhada no Capitólio era uma coisa brutal, um estalo." Falamos de uma época em que só havia um canal de televisão e "o cinema era incipiente" mas nos teatros havia cartazes luminosos e lotações esgotadas. "Era uma loucura." O teatro de revista e a comédia foram a sua grande escola. "É chegar, ver e vencer. O actor tem oito minutos para mostrar o que vale, que é o tempo de uma rábula." Aconteceu-lhe muitas vezes pensar "ai, meu Deus, que isto está a correr tão mal." Nesses momentos, não há nada a fazer. "Corre mal e pronto, na próxima será melhor. Quanto mais se pensa nisso, pior."

Na televisão, começou pelo teatro, ao vivo. E a fama chegou, mais uma vez, com a comédia, em programas como Nicolau no País das Maravilhas (1975) onde, com Her-man José, criou O Senhor Feliz e o Senhor Contente. "Algumas pessoas achavam que eu era novo demais, mas o Nicolau e o produtor João Soares Loures, disseram: Quem faz é o miúdo", recorda Herman. A trabalhar, os dois humoristas eram como "dois colegas de liceu", diz Herman José, garantindo que a "grande amizade" entre eles se mantém, sem qualquer rivalidade. "Foi sempre uma diversão porque somos os dois infantis e brincalhões mas ao mesmo tempo muito profissionais, quando é para trabalhar é para trabalhar. Até porque como gostamos pouco de trabalhar queremos despachar aquilo rapidamente."

Também o realizador António- -Pedro Vasconcelos, que viria a trabalhar com ele muito mais tarde - escreveu propositadamente o filme Os Imortais (2003) a pensar no actor - sublinha esse lado: "Ele é muito brincalhão e descontraído, mas quando começa a filmar tem uma enorme concentração."

Para a história do humor na televisão portuguesa, ficam o mordomo de Gente Fina É Outra Coisa (1982) e a galeria de personagens criadas em Eu Show Nico (1988). Rosa do Canto, que trabalhou com Nicolau Breyner, por exemplo, em Euronico (1990) e Nico D'Obra (1993), recorda "o excelente ambiente nos bastidores" e divertimento, até mesmo quando se gravavam três episódios num dia: "Ele conhecia o texto mas não o decorava. Improvisava imenso mas podia fazê-lo porque é um actor inteligente e de um grande talento. Nós tínhamos que o acompanhar."

Os que o conhecem sublinham a sua generosidade, como actor e não só, a humanidade, a simplicidade. Ele confirma: "Recuso- -me a admitir que a popularidade tenha mudado alguma coisa na minha vida. Sou exactamente a mesma pessoa que sempre fui."

Entretanto, já se aventurava noutros voos. Em 1982, Nicolau foi um dos primeiros a perceber que era altura de fazer uma telenovela portuguesa. "A primeira coisa da Vila Faia a aparecer foi a música do genérico, com o Thilo Krassman ao piano." Ninguém sabia como se fazia uma novela, tiveram de inventar. Três meses de ensaios, enfiados numa garagem com os actores. "Um trabalhão enorme" para escrever e realizar, em estúdios improvisados, a equipa criativa - além de Nicolau Breyner, Nuno Teixeira (realizador), César de Oliveira, Thilo Krassman, Francisco Nicholson, Vítor Mamede - reunidos numa rulote. "Mal cabíamos lá dentro", recorda Nichol-son, acrescentando: "Foi um trabalho épico." Havia dias em que não conseguiam ir a casa, dormiam à vez, na rulote. Quando o episódio estava pronto, o estafeta acelerava a moto para trazer a cassete de Sintra a Lisboa. "Tudo em cima da hora." Venceram o "cepticismo natural dos portugueses" e Vila Faia foi um sucesso estrondoso. "Todos puxávamos para o mesmo lado, não havia famosos, houve um empenho profissional único", lembra Margarida Carpinteiro, que interpretava o papel de um prostituta. "Era um tema tabu. Mas foi um desafio com os pés bem assentes na terra porque era uma novela muito bem escrita, muito bem feita."

Nicolau Breyner também interpretava: "Quando fiz a Vila Faia, as pessoas surpreenderam-se muito. Diziam-me: afinal, também fazes drama. Mas a verdade é que, no Conservatório, eu sempre fiz drama. Eu também faço comédia. E não faço a mínima diferença entre uma coisa e outra, os papéis ou são bons ou são maus."

Seguiu-se um período de grande envolvimento com as novelas, como argumentista, realizador e produtor. "Não tenho saudades do teatro. Não tenho a necessidade de ter um público ao pé de mim. E aquela rotina teatral, de começar sempre à mesma hora e fazer sempre igual todas as noites, dá cabo de mim." Hoje em dia, na televisão, limita-se a interpretar. No ano passado, concretizou o sonho "muito antigo" de realizar um filme, O Contrato, e já tem mais dois filmes na forja. "Não planeio nada na minha carreira, mas agora, olhando para trás, vejo que o meu percurso todo foi para chegar aqui. É aquilo que mais prazer fazer. O cinema é mais rigoroso, plasticamente muito bonito e com uma narrativa mais ágil." Nicolau não pensa na reforma e não diz que não voltará a fazer seja o que for, mas o seu desejo é poder, cada vez mais, dedicar--se aos filmes, seus e de outros.

"Faço sempre as coisas por duas razões: ou por dinheiro ou porque me apetece. Quando as duas coisas se conjugam ainda melhor." Na próxima terça-feira, o actor sobe ao palco do Auditório dos Oceanos do Casino de Lisboa para um show de stand-up comedy com o seu nome e com o qual pretende assinalar os 50 anos de carreira. "Apetece-me fazer este espectáculo, chegar a um palco e dizer uma série de coisas. São coisas simples, não é nada de muito comprometido", garante sobre o monólogo escrito em parceria com a equipa das Produções Fictícias. "Não são coisas saudosistas, que eu sou o mais anti-saudosista que existe. São reflexões a brincar sobre o quotidiano de um homem da minha idade."

Diz-se anti-saudosista e não está a mentir. Com quase 70 anos, Nicolau Breyner não guarda fotografias da sua carreira, nem recortes de jornal nem nada. Tem tudo o que precisa na sua cabeça. Não liga muito a datas e não gosta de festejar aniversários. Para já, além do espectáculo, a comemoração dos 50 anos de carreira tem-se traduzido numa série infinita de entrevistas para a imprensa a que se junta a colaboração com a jornalista Sarah Adamopoulos que está a escrever a sua biografia. "É uma experiência estranha", confessa. "Há dias em que fico deprimido porque mexi muito na minha vida, lembrei-me de coisas de que já me tinha esquecido, falei de pessoas de que tenho saudades. Tem me obrigado a reflectir sobre uma série de coisas, porque é que as fiz assim e não de outra maneira." Não é no divã mas no sofá do seu apartamento de dois andares, na Lapa, geralmente rodeado pela mulher, Mafalda, e pelos dois enormes cães mastins de Bordéus, Cascão e Movie, que Nicolau tem feito estas sessões de quase psicanálise. "Só daqui a 50 anos é que faço outra igual."

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