Trump tem Portugal na mira

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Havia de cá chegar! Depois dos insultos aos mexicanos e aos chineses, ao senador McCain, ao pai de Ted Cruz, a Hillary e ao palpável género feminino em geral, aconteceu: Donald Trump ofendeu um português. E escolheu a Fox News para divulgar a afronta. O líder do mais poderoso império da história chamou mentiroso a um produto nacional vizinho do mercado de Campo de Ourique, Lisboa. É certo que o mesmo Trump chamou obsoleta à NATO e esta semana já deu a volta ao prego ("eu disse que a NATO era obsoleta, já não é"), mas a gravidade, desta vez, poderá ter repercussões internacionais de comer e chorar por mais: não esquecer que O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo - é esse o luso gravemente ofendido - já tem delegações no Brasil, Angola, Austrália, Áustria e por aí fora.

Mas vamos ao fact checking, remoamos a colher nas camadas crocantes de merengue envoltas numa cremosa mousse. E ao saborear este grave incidente, lembremos que chocolate, chokol e atl, vem das línguas maia e asteca, terrível presságio pois são já duas civilizações extintas e sem paladar. Mau agouro também, quando estamos a celebrar o centenário da partida do nosso Corpo Expedicionário para a Grande Guerra. Pois nada disso fez deter a ofensiva boquinha gulosa de Donald J. Trump, até porque desta vez falou do que sabe: cacau é com ele.

Naquele noite, 6 de abril, Trump recebia o presidente chinês Xi Jinping, na sua propriedade em Palm Beach, Mar-a-Lago, e tudo correu da maneira confusa que o nome da casa deixa sugerir. Eis o que Trump contou depois, esta quarta-feira, 12, à jornalista da Fox Maria Bartiromo sobre o exato momento em que lhe apeteceu mandar 59 mísseis de cruzeiro Tomahawk à Síria. Disse ele: "Eu estava sentado à mesa. Nós tínhamos acabado de jantar, estávamos na sobremesa. Tivemos o mais belo pedaço de chocolate que você já viu, e o presidente Xi estava a gostar." A jornalista estava fascinada e o mundo também iria estar. Assistíamos àquelas pequeninas normalidades que tantas vezes envolvem as epifanias dos grandes homens: ao Newton caiu-lhe uma maçã no cocuruto, Trump comia um bolo de chocolate. Se um dia ele lançar, sei lá, "a mãe de todas as bombas", o homem fica diabético...

Entretanto, ele prosseguiu: "Deram-me a mensagem dos generais, os navios estavam prontos, o que fazer? Eu disse para irem em frente, de modo que os mísseis estavam a caminho. Eu disse: Sr. presidente, deixe-me explicar uma coisa." E, didático, como quem ensina o que fazer para o soufflé não abater, Donald lá explicou a coisa: "Então, o que acontece é que acabámos de lançar 59 mísseis contra o Iraque e eu queria que o senhor soubesse disso. E ele comia o bolo. E sempre calado."

Aqui chegado, o leitor quase se engasgou. Eu sei o que o leitor está a pensar: e se o Trump, em vez de se enganar trocando a Síria pelo Iraque, tivesse dito, sei lá, Xangai: "Por falar nisso, querido Xi, acabo de lançar umas ameixas para Xangai. Não faz mal, pois não? O meu genro disse-me que você vive mais lá para cima, em Pequim, não é?" Ora, ora, isso são considerações de gente vulgar, que pensa que os grandes da geopolítica se preocupam que as bombas caiam aqui ou ali. A Bartiromo emendou: "O ataque foi na Síria, não no Iraque..."

Trump varreu a futilidade: "Isso, Síria." E prosseguiu a conversa que tivera com o hóspede: "Eu quis dizer-lhe logo, para quando ele chegasse a casa, é que estávamos quase a acabar, tinha sido um dia em cheio em Palm Beach, ele acabava a sobremesa, chegava a casa e diziam-lhe: sabe que o tipo com quem jantou acabou de atacar um país?" Não, Trump tinha de lhe contar os Tomahawks todos. Podia também, é certo, declamar Álvaro de Campos: "Como chocolates, pequena/ Come chocolates..." Mas o chinês era capaz de levar a mal, uma coisa é ouvir que bombardearam o Iraque ou até Xangai, outra é ouvir: "Come, pequena suja, come!" Trump não declamou Pessoa, pois, como já disse, ele tem um amargo de boca contra nós. A da Fox também não foi por aí e perguntou como reagiu Xi.

Trump tem o sentido de contar coisas. Como reagiu o chinês? Trump: "Ele fez uma pausa de 10 segundos, e pediu ao intérprete para repetir o que ia dizer." Trump disse o que o outro disse: "Se alguém usa gases para fazer isso a crianças ou bebés, então, [o lançar mísseis contra eles] para mim, ok..." E Trump rematou: "Para ele estava bem. Era ok." A cena é comovedora para quase todo o mundo. Quase, porque exatamente do que o mundo gostou - visualizando a colher de Xi Jinping a caminho da boca, os olhos de gula e a boca encolhendo os ombros, manda lá os Tomahawk à vontade - era o que a colher transportava. O chocolate que tanto insultou os portugueses.

Donald Trump bombardeou a Síria com mísseis, e aos portugueses com a boca cheia. Aos sírios chateou-os com a beleza poética dos 59 Tomahawk, "todos a bater no sítio certo, incrível, lançados a centenas de milhas, todos a bater onde devia ser..." E a da Fox, excitada: "E não tripulados!" Claro, a não confundir com o Dr. Strangelove que, aí, era um comandante (Slim Pickens) a cavalgar a bomba atómica. "É brilhante, é de génio, a nossa tecnologia, o nosso equipamento, bate qualquer outro e de longe...", entusiasmava-se Trump. E, atenção, ainda eram só mísseis, ainda não era a "mãe de todas as bombas"! Em todo o caso, mísseis ou mãe das bombas, era assunto com outros. Escusava era de ter-se metido connosco e chegado ao acinte da história do chocolate.

Essa, não! "Tivemos o mais belo pedaço de chocolate que você já viu, e o presidente Xi estava a gostar"!... Para já, a intenção de criar cizânia com terceiros (passou a apetecer-nos exigir Macau de volta). Depois, a escalada que se anuncia, até porque o ministro Santos Silva comeu e calou. Hoje é o Melhor Bolo de Chocolate do Mundo, amanhã, é a broa de Avintes. Estou a avisar.

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