Há muitos, muitos anos, um cavalheiro da Beira, da região de Viseu, convidou o seu caseiro para irem juntos ao cinema. Zé Bernardo, analfabeto, era esperto como poucos e, no final da fita, perguntado o que achara daquela sua primeira experiência na sala escura, disse tão-só o seguinte: "é uma luz que nos entra pelos olhos dentro e que nos faz ver coisas que parece que lá estão, mas não estão". É a melhor síntese que conheço sobre a 7.ª Arte, mais certeira e mais sagaz do que todas as teorias das academias e teses de intelectuais, e lembrei-me dela há dias ao rever O Rio Sagrado, de Jean Renoir, uma das luzes mais belas e mais fulgurantes que já me entraram pelos olhos dentro..Baseado numa novela de Rumer Godden, autora hoje caída em desuso e esquecimento, o filme de Renoir, datado de 1951, é, no fundo, uma metáfora sobre o tempo e as idades da vida, centrada no lento caminhar do Ganges e, com ele, da passagem da adolescência à idade adulta de Harriet, uma rapariguinha de uma família inglesa, burguesa e feliz. Seu pai dirigia uma fábrica de juta, onde trabalhavam centenas de operários, a mãe produzia e criava vários filhos, louros e alvíssimos, enquanto bordava tranquilamente, lia ou dormia a sesta na varanda fronteira ao rio, no meio de um parque frondoso, ensombrado por uma enorme árvore da borracha..O filme, em frenético technicolor, foi integralmente rodado na Índia e a beleza cansada dos seus cenários enquadra na perfeição o quotidiano vagaroso e modorrento daquela família inglesa, burguesa e feliz. É essa a imagem que temos da presença britânica no Raj, ao fim de tantos filmes e de tantas séries, desde A Jóia da Coroa, de 1984, baseada no romance homónimo de Paul Scott, até Passagem para a Índia, também de 1984, filme de David Lean baseado no romance, igualmente homónimo, de E. M. Forster. Sempre que falamos da Índia, ao nosso imaginário logo afluem clubes selectos e festas alegres, em relvados a perder de vista, partidas de críquete e vestidos de branco, senhoras a beberem refrescos servidos por batalhões de criados, caçadas aos tigres e jantares na selva, entre fogueiras e céus estrelados..A realidade, porém, era mais prosaica e bem mais sombria. Nos alvores dos anos 20, depois de ter abandonado a universidade e andado à deriva entre o Egipto, a Alemanha e a Índia, Edward Morgan Forster, que não cumprira serviço militar na Grande Guerra por ser objector de consciência, tornou-se secretário particular do marajá de Dewas, Tukojirao III. O relato que fez dos seus tempos na Índia, há pouco republicado na preciosa colecção de livros de viagens da editora Eland (The Hill of Devi, An Englishman Serving at the Court of a Maharajah, 2022), desmente au complet a visão glamorosa e faustosa da vida dos ingleses ao serviço do império, para eles uma ocupação normal ou saída existencial e profissional igual a tantas outras, ainda que mais radical e exótica. Para a esmagadora maioria, o colonialismo não era vocação, mas trabalho, exactamente igual ao daqueles que, em busca de melhor vida, emigravam para paragens longínquas, quase sempre hostis..Ao contrário do que julgamos, e pese a altivez senhorial das suas maneiras, os ingleses da Índia, ou de África, não eram aristocratas, ou gente com muitas posses, mas homens de classe média, pequenos burgueses vulgares, que se empregavam ora no exército, ora na burocracia (mais de metade dos ingleses da Índia trabalhava para o governo, como soldados, juízes, médicos, engenheiros, funcionários públicos). Os grandes nobres, duques, marqueses, condes, só iam para os trópicos como governadores, ou em posições cimeiras, sendo, pois, ínfima minoria no contingente colonial, como nos explica David Gilmour em The British in India. Three centuries of ambition and Experience (Penguin, 2019)..Mas, como sempre, é na posição e na situação das mulheres que percebemos o que foi ou terá sido a essência do colonialismo britânico. Antes de ganhar fama como historiadora da Grande Guerra - ou, melhor, do desastroso caminho que conduziu a 1914-18 -, a canadiana Margaret McMillan escreveu um notável livro, Women of the Raj. The Mothers, Wives, and Daughters of the British Empire in India (2.ª ed. revista, Thames & Hudson, 2018), em que, apoiando-se em milhares de cartas, diários, escritos íntimos e testemunhos reconstrói as diversas facetas da presença feminina a Oriente: a longa e perigosa viagem por mares infindáveis, sem perspectivas de regresso a casa; o casamento marcado, muitas vezes com homens que mal conheciam, habituados ao mando, embrutecidos pelo álcool ou pelo calor dos trópicos; a adaptação ao clima e ao ambiente, com temperaturas imensas, chuvas incessantes, febres e pragas letais; o tédio e a solidão, sobretudo para as que tinham maridos colocados em zonas remotas (onde, ademais, a assistência médica não chegava e os dentistas ambulantes cobravam, por uma consulta, o equivalente a dois meses de salário de um funcionário médio); o criar dos filhos, os quais, chegados à adolescência, ou até antes disso, iam estudar para Inglaterra para jamais voltarem; o cuidado das casas, bungalows bem mais humildes do que julgamos, regularmente infestados de formigas brancas, baratas e insectos rastejantes, de serpentes que se alojavam ao fresco no pior e mais desnudado de todos os lugares, as casas-de-banho. Para nós, a Índia colonial é um lugar romântico, de cálida nostalgia; para elas, era um mundo desconhecido e hostil, impregnado de perigos. À chegada, recebiam um sem-fim de conselhos práticos, tais como "nunca apertar a mão a um indiano, pois não sabemos onde ela passou", a que os hindus, de seu lado, respondiam tratando os ingleses como intocáveis e recusando-se sequer a comer com eles ou na sua presença..Margaret McMillan chama-lhes as "figurantes do grande drama do Império" e, na verdade, quase ninguém as recorda ou ao papel que tiveram. Para a esmagadora maioria delas, o Raj não foi sequer uma opção, mas dever, que muito poucas escolheram de livre vontade. Foram e estiveram na Índia porque os maridos foram aí colocados ou porque eram filhas, mães ou viúvas de homens que lá viviam..Antes da Revolução Industrial, como nota McMillan, os ingleses não eram substancialmente mais poderosos do que os asiáticos e os africanos e, segundo ela, numa afirmação controversa, não se sentiam superiores aos outros povos. Por volta de 1780, Sir William Jones, um juiz colocado em Calcutá, que mais tarde viria a ser um reputado estudioso de sânscrito, ainda venerava a Índia como "mãe das ciências", sentimento que mudaria com a industrialização, graças à qual a East India Company conseguiu dominar, pela força, chantagem ou dinheiro, sucessivos reinos e principados. A Companhia tentou fixar-se primeiro na Indonésia, sem sucesso, e só depois se voltou para a Índia: primeiro, junto à costa, nos portos seguros; a seguir, aproveitando a derrocada do poderio mogol, na direcção do interior, em competição com os franceses, vencidos em 1757, com os maratas, derrotados em 1818, e com os sikhs, em 1849. A construção de um império não foi, portanto, desígnio, mas destino, e surgiu por uma conjunção de acasos fortuitos, um timing acertado e muita tenacidade..Por preconceito e por gosto, os homens que para lá foram jamais pensaram casar-se com indianas. Tiveram, por isso, de importar noivas, raparigas de classe média, tementes a Deus e com sólidos princípios vitorianos, que encaravam a carreira das Índias como uma forma de promoção social, um escape ao background doméstico ou, simplesmente, um meio para arranjar marido. O Oriente, claro está, tinha também um apelo próprio, sensual e místico, tantas eram as promessas nele inscritas e as evocações feitas nos relatos romanceados de torna-viagem. A abundância de mão-de-obra barata, quase escrava, e a multidão dos criados favoreciam um estilo de vida inimaginável em Inglaterra, com as mulheres a serem chamadas a desempenhar o papel de protagonistas de um processo histórico e político que as transcendia. O sistema de castas, de seu lado, implicava que certos criados não pudessem realizar diversos trabalhos, o que aumentava ainda mais o número dos empregados domésticos, alguns dos quais dedicados em exclusivo a tarefas ultra-específicas, exigidas pela ausência de máquinas ou outros sistemas de apoio: só uma ínfima parcela dos bungalows dispunha de águas correntes, pelo que existiam - e tinham de existir - criados devotados, num vaivém constante, apenas a transportar baldes com líquidos de toda a espécie..A imagem de senhoras ociosas, rodeadas de servos obedientes, símbolo maior da tirania colonial, é sem dúvida verdadeira, mas decorria de um sistema mais vasto em que à oferta de mão-de-obra se associavam padrões mentais que impediam as mulheres de trabalhar ou de desenvolver grandes actividades fora de casa, vedando-lhes o acesso, por exemplo, às acções de caridade tipicamente femininas, na Índia reservadas aos missionários. As que não tinham interesses intelectuais para ocupar o espírito - ou seja, a maioria -, enfrentavam o pesadelo maior, o tédio, o enorme e infindável tédio, omnipresente na correspondência que enviavam para a metrópole. Na frente doméstica, não era suposto que exercessem diversos trabalhos, tarefa dos seus criados, e, fora dela, tinham a obrigação de contribuir, por vários meios, para a progressão da carreira dos maridos. Do que ficou da memória imperial, há inúmeras relatos de mulheres a quem se atribui a culpa pela ruína profissional e social dos esposos, seja por causa de um ou outro deslize impensado, considerado escandaloso, seja porque não se empenharam o suficiente na ascensão dos seus homens. Por detrás de um tédio bíblico, existia um stress constante, uma permanente ansiedade de classe e de status, uma obsessão com os mais ínfimos pormenores de código e de etiqueta. O governo do Raj fizera publicar, aliás, uma Ordem de Precedências, convertida em bíblia das donas de casa, que determinava ao milímetro o lugar de cada qual no protocolo das festas e jantares de estilo. À mesa, não era de bom tom falar de política e negócios, e como as artes e as letras poucas novidades davam, a conversa resumia-se a "carreira, desportos, criados e filhos", queixou-se Lady Dufferin, mulher do vice-rei na década de 1880. "Deus me livre de casar com uma mulher inglesa!", proclamou um francês ao regressar da Índia, exausto de tantos diálogos triviais e banais..Ao princípio, a East India Company proibiu os homens de casarem ou trazerem mulheres para a Índia. Como é natural, muitos amancebaram-se com as locais ou, pior ainda, na perspectiva dos directores da Companhia, fervorosos protestantes, casavam com mulheres católicas, filhas ou viúvas de portugueses. Aos poucos, autorizou-se, então, a vinda de mulheres de Inglaterra, obrigadas a enfrentar, desde logo, uma longa viagem - por vezes, seis meses! - pelos perigosos mares do Atlântico Sul e do Índico. As noivas dos oficiais ocupavam os melhores lugares, enquanto a esmagadora maioria das outras viajava no porão, em condições terríveis, ao lado dos cavalos. Como o exército não apreciava que os soldados levassem mulheres para a Índia, tudo fazia para que a viagem fosse uma experiência terrível, dissuasora. Era tanta a escassez de navios que, com frequência, se preferia o caminho por terra, até ao Egipto, e só daí pelo Mar Vermelho, trajecto que, a certa altura, chegou mesmo a suplantar o da viagem pelo Cabo..As cartas e os diários mostram que a impressão à chegada era sempre a mesma, fatalmente. O odor primeiro do que tudo, sentido ainda nem o navio aportara; depois, as cores, e a seguir o ruído, a vozearia das docas, o barulho infernal de animais e humanos. Hoje, à nossa distância, é impossível alcançar a dimensão colossal do abismo que aquelas mulheres sentiram ao confrontarem-se com deuses e ídolos de uma religião diferente, com línguas incompreensíveis, com hábitos e modos estranhíssimos. Em Madras, logo que a corrente do rio se levantava, os barqueiros extorquiam às inglesas indefesas mais dinheiro do que o estipulado e, pior ainda, estavam praticamente nus, com uma tanga e com um turbante, nada mais (como muitas delas escreveram para os pais, horrorizadas). Nas margens, cadáveres em decomposição, devorados pelos cães, e, para adensar a confusão nos espíritos, um rendilhado babélico de divisões e de credos: muçulmanos e hindus, budistas, judeus, católicos, protestantes, sikhs; entre os islâmicos, sunitas, xiitas e adeptos de novas seitas, como o wahabismo; entre os hindus, seguidores de Krishna, de Vixnu, os tugues adoradores de Kali, que estrangulavam os inimigos; além disso, o sistema de castas, em teoria apenas quatro, na prática com mais de duas mil. A dado trecho, os europeus desistiam de perceber a confusão e o enigma da Índia, e tratavam todos por igual, como uma massa indistinta, o que, naturalmente, gerava profundos ressentimentos entre hindus e muçulmanos..Estes acabariam por eclodir, e de forma sangrentíssima, no Grande Motim de 1857-1858, também chamado Grande Rebelião ou Revolta dos Cipaios, que explodiu precisamente por causa daquele desprezo pelas idiossincrasias dos autóctones (entre outros factores evidentemente): os soldados levantaram-se quando souberam que deveriam olear as espingardas com uma gordura de base animal, de vaca e de porco, contrária aos princípios da sua fé. Depois, a revolta alastrou a uma velocidade inaudita, com uma escala e uma violência que ainda hoje impressionam, e a que os britânicos replicaram com pior barbárie: às seis mil vítimas inglesas, incluindo muitos civis, mulheres e crianças, corresponderam cerca de 800 mil indianos mortos, seja na repressão da rebelião, seja nas fomes e epidemias surgidas por sua causa. Houve mulheres inglesas crucificadas, violadas em massa, queimadas vivas, e histórias de raptos e de cativeiros durante muitos e muitos anos. A memória do "Great Mutiny" iria perdurar durante décadas, agudizando tensões e ressentimentos, agravando a desconfiança mútua, povoando os temores e os pesadelos das inglesas na Índia, sobretudo as que presenciaram ou que viviam nas zonas dos massacres ou que habitavam em regiões remotas e mais inseguras. Ao tédio e ao stress social, juntava-se agora o medo, à espreita em cada esquina, no olhar de cada indiano. O censo de 1881 contabilizara 145 mil europeus numa população total de 250 milhões de seres humanos. Quarenta anos depois, aquele número ascendera para uns meros 165 mil, uma gota de água num oceano imenso, considerado hostil ou suspeito (muito provavelmente, no tempo do Raj, entre 1858 e 1947, viveram menos europeus na Índia do que nos dias de hoje). A maioria vivia concentrada nas cidades, mas, por imposições do império, muitos eram obrigados a residir em zonas rurais, longe de tudo, como o Punjab, tido por inacessível e selvagem. Alguns, muito mais do que julgamos, não estavam ao serviço de Londres, mas de príncipes e marajás (um deles, Mister Sandy, encontrava-se na Índia exclusivamente a cuidar dos triciclos e veículos ligeiros do marajá de Rajput...)..Por razões de autodefesa, e natural saudade, manter laços com a pátria, evocada como "Home", era um dispositivo elementar de sobrevivência, a que se juntava o álcool, obviamente, cujo imoderado consumo, inclusive pelas mulheres, impressionava todos os visitantes estrangeiros e, a par dele, a prática regular, obsessiva, de desporto e exercício físico, pois ser bom desportista, sobretudo na prática do pólo, constituía o melhor elemento de progressão na carreira do exército. "Os homens e as mulheres preferiam aborrecer-se a tornar-se nativos", diz Margaret McMillan, a ponto de manterem costumes arcaicos e estilos de vida já caídos em desuso na metrópole. Quando surgiram a fotografia e o cinema, as autoridades do Raj ficaram apavoradas, temendo que fossem usados como meio de difusão de imagens obscenas (sobretudo, o pavor maior, de imagens de inglesas com nativos). Nunca se conseguiu, porém, recriar na Índia uma "Inglaterra em miniatura", dada a gigantesca dimensão do território e a abissal desproporção numérica entre colonizadores e colonos. E, para agravar as coisas, as constantes mudanças de postos dos funcionários militares e civis impediam a formação de laços e amizades perenes, agudizando a solidão das mulheres e inviabilizando a formação de um tecido social estável e coerente..Do ponto de vista social e humano, o Raj foi, assim, uma pequena aldeia gaulesa, composta por indivíduos de classe média: para lá não iam os muito ricos, porque não precisavam; nem iam os muito pobres, porque, para o trabalho braçal, nas minas ou nas fabriquetas, existia mão-de-obra de sobra, mais servil e mais barata. Em Londres, o establishment troçava em surdina dos colonos, dos seus modos arrebicados, da forma como falavam, das suas pretensões de ascensão social. Enquanto isso, as senhoras do Raj entretinham-se como podiam: a religião, por razões óbvias, não deveria ser ostensivamente exibida, pelo que os domingos eram tratados como dias de lazer, iguais a outros, em que se gastava o tempo em caçadas aos tesouros, garden parties e gincanas, teatrinhos amadores e, sobretudo, muita má-língua. Para as recém-chegadas ou para as que ousassem comportar-se de modo "original" e "diferente" (v.g., refugiando-se na leitura, contactando os nativos, tendo curiosidade por eles e pela sua cultura), a vida nos trópicos era um inferno, um sufoco permanente. A uma delas, Evellyn Bell, que ficara noiva de um professor nos anos 1920, foi dado um conselho prudente antes de partir para os trópicos: "não tentes ser esperta na Índia. Lá, isso não funciona". Foram raras, raríssimas, as que ousaram transgredir: a mais famosa de todas, pelo menos no seu tempo, terá sido Eliza Gilbert, cuja adolescência foi passada na Índia, onde o seu pai fora colocado como tropa, e que se tornou na lendária cortesã e bailarina exótica Lola Montez, amante de Lizst, Alexandre Dumas filho e Luís II, da Baviera, que a fez condessa de Landsfeld, confirmando o dito da época, "Whatever Lola wants, Lola gets"..Para agravar as coisas, o machismo era ali muito mais visível e tolerado, sendo as mulheres encaradas como bibelôs ou adereços na vasta composição do império, um assunto de homens. Não por acaso, nas memórias que estes escreveram dos seus tempos no Raj abundam as referências a caçadas e bebedeiras, mas há muito poucas, quase nenhumas, alusões às mulheres, excepto as nativas. O general George Greaves, que passou muitos anos na Índia, narrou em páginas e páginas as suas aventuras na caça e na pesca, descreveu com nostalgia os cães e os cavalos que teve, mas só dedicou uma inócua linha à sua esposa e para dizer que, um dia, o cão Ranee a tinha trazido são e salva, de volta a casa..A abertura do Canal do Suez, em 1869, facilitou enormemente os contactos com a metrópole, mas favoreceu também o domínio imperial da Índia, agora feito à luz de uma ideia de superioridade rácica que a descoberta de que os indianos eram arianos, ao invés de contrariar, veio reforçar, na convicção de que eles se tinham degradado e tornado mais escuros e, logo, precisavam de ser devolvidos à sua antiga e alva pureza e grandeza. Fracassada a "missão civilizacional", mas deixando na paisagem e nos hábitos inúmeros e indeléveis traços da sua presença, os ingleses abandonaram a Índia às pressas, pressionados pela História, deixando atrás de si uma divisão fronteiriça artificial, feita a régua e esquadro, e um cenário de violência religiosa e étnica que terá custado quase dois milhões de mortos, ou mais..Os que assistiram ao fim do império reagiram mal na hora de regressar a casa, sentindo-se despojados dos seus teres e haveres, incapazes de se ambientarem aos frios e aos nevoeiros britânicos. Alguns estavam na Índia desde há várias gerações e outros, muito poucos, aceitaram o convite das novas autoridades para ajudarem na construção da merecida independência. Em lugares remotos, houve gente que decidiu ficar por não querer abandonar os seus cães, impedidos de viajarem. Os que vieram por mar, atiraram os chapéus e os bonés à água mal chegaram ao Mediterrâneo, cumprindo um velho ritual do império desde tempos imemoriais. Habituados a um exército de criados, quando chegaram a Londres sofreram a suprema humilhação de serem metidos em carruagens de segunda e de terceira classe. Estiveram do lado errado da História, mas fizeram parte dela. Por isso, cumpre lembrá-los - e aos seus tristes trópicos..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.