Tristes manhãs submersas – a visão de um católico

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Só no último mês, a imprensa de referência publicou cerca de 20 artigos de opinião sobre os crimes de abuso sexual no seio da Igreja Católica, possivelmente surgidos a propósito da divulgação da investigação sobre o caso francês e das intoleráveis tolices proferidas publicamente por um bispo auxiliar de Lisboa. Há nesta avalanche opinativa algo de novo: uma significativa pressão social no sentido do apuramento da verdade. Estivessem os responsáveis da Igreja portuguesa atentos e moralmente motivados, e interpretá-la-iam como um alerta e uma oportunidade para rever a vida eclesial. Lamentavelmente, salvo exceções, insistem na trajetória de choque contra a realidade, num exercício de menoridade moral e incompetência cognitiva e estratégica. Deste facto, os católicos deveriam tirar ilações sobre a qualidade dos seus pastores.

Sem dúvida que temos muitas razões para temer a abordagem ao problema dos abusos sexuais pelo clero. Haverá estragos e muitíssima dor, desde logo porque somos todos colocados em causa, sobretudo a partir do momento - já passado - de tomada de consciência da sua existência. Eis cinco dessas razões:

1.ª e principal, tantas vezes submersa na concorrência argumentativa: os abusados sexualmente não são vítimas difusas, são vítimas concretas, em geral crianças e jovens em situação de dependência ou subalternidade, ao cuidado da Igreja, que as deveria proteger. Carregam pela vida fora um sofrimento psicológico, aparentemente um detalhe para os encobridores dos abusadores;

2.ª Um fenómeno criminal deste tipo, de tão grande prevalência e incidência (em todos os continentes e, portanto, culturas), revela-se indissociável das formas de organização, de construção do poder e do seu exercício no interior da Igreja. É, pois, um problema sistémico que põe em causa o conjunto da Igreja. Neste quadro, os católicos precisam reagir e encontrar vias para realizar um profundo movimento de introspeção organizacional, que terá que contar com a análise das ciências sociais, mas igualmente que formular conclusões morais e éticas vinculativas na prevenção e penalização dos abusos, o que implicará alterações de vulto na lógica interna da Igreja, incluindo desclericalizá-la e dar mais espaço aos leigos. Será um árduo caminho, que interferirá com o modus vivendi e o status quo eclesiais, indo ao encontro das aspirações do Papa Francisco;

3.ª Grande é o desespero ao ver a hierarquia (de novo com exceções) adotar um comportamento defensivo-corporativo, ao denegar a existência do fenómeno sem apresentar um racional compreensível. Se é certo que se desconhecem, por ora, evidências da existência de abusos generalizados na Igreja portuguesa, não é menos certo que, simetricamente, não se identificam motivos de ordem sociológica, cultural ou outra para pensar que ela seja imune a esta criminalidade; pelo contrário, do seu cariz e práticas marcadamente conservadoras conclui-se pela existência de condições que lhe são favoráveis, incluindo o encobrimento. Quererão os bispos proteger a Igreja-instituição, mas erram o alvo ao confundi-la com os valores evangélicos. Impressiona a sua deficiência cognitiva no reconhecimento da realidade (ou, em alternativa, indecente perversão) e a insensibilidade à franca possibilidade de existirem vítimas. Perante tamanha inconsciência atitudinal, arrisca-se perguntar que papel reservam eles a Jesus Cristo no seu coração, pensamento e ação?

O mero bom senso recomendaria que a Conferência Episcopal cumprisse as orientações papais, aliás injuntivas, na procura da verdade, lançando uma investigação realizada por personalidades católicas e não-católicas credíveis e profissionais forenses qualificados, assim garantindo a sua independência e qualidade. Não sendo o caso, um dia ela virá pela via política, trazendo custos reputacionais agravados para a Igreja:

4.ª O ato de perdoar devido aos abusadores e seus encobridores passivos e ativos situa-se no plano espiritual e nunca no jurídico, o que simultaneamente levanta (para muitos) o melindroso problema da inviolabilidade da confissão. Porventura será uma falsa questão, porque tipicamente o abusador desenvolve mecanismos para tornar o crime cometido aceitável perante si próprio, não sentindo por isso necessidade de o confessar ou expiar, tese a requerer maior ponderação;

5.ª É consensual que a Igreja possui uma visão distorcida e doentia da sexualidade humana, o que ao longo dos séculos gerou uma anética grave, até plasmada na doutrina (levando à sistemática desvalorização da mulher e à exclusão e intimidação dos homossexuais). Não será decerto surpreendente que essas distorções, quando conjugadas com o exercício de poder, uma pulsão sexual reprimida ou debilidades emocionais, se projetem no cometimento de abusos sobre terceiros, mais fracos. Já a vulgar explicação do celibato dos padres parece ser um erro analítico, uma escapatória demasiado fácil e incompleta, tanto mais que, pelos dados conhecidos, os abusados são tendencialmente do sexo masculino.

Concluindo, há um problema muito grave na Igreja, afetando muita gente e a sua reputação, e cuja etiologia e manifestação precisam ser esclarecidas e aprofundadas. Nestas condições, seria interessante que os católicos iniciassem um processo de reabilitação interna, orgânica e ética, que, por imperativo moral e de consciência cívica, começasse por exigir à Igreja o lançamento de uma investigação independente. Com urgência!

Assessor de reinserção social

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