Tragédias provincianas

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Sou um provinciano. Em sentido muito literal. Vivi a infância e a adolescência em cenários de província e é a esses cenários que pertencem quase todos os momentos que, porventura equivocamente, associo à construção da minha identidade. Em todo o caso, a província tinha de si própria uma consciência, por assim dizer, deficitária: a cidade, não sendo utópica nem inacessível, era um mundo de outras coordenadas e diferentes vivências.

Não creio que esta visão, e os sentimentos que dela decorriam, se repita na actualidade. Para o melhor e para o pior, os contrastes entre a cidade e as serras atenuaram-se, mesmo quando detectamos diferenças abissais entre os muitos mundos de que é feito o nosso mundo (em boa verdade, não precisamos de sair da capital para o perceber).

Lembrei-me de tudo isto ao ver, esta semana, as notícias sobre o acidente no Metro de Superfície de Mirandela, na linha do Tua. Aquelas imagens dos repórteres enquadrados por uma paisagem deslumbrante são um dos restos fatais com que a televisão, de um modo geral, aborda a província. Mais exactamente, há dois registos dominantes para construir notícias da província. Um deles, o mais antigo e salazarista, é o pitoresco: tudo o que vem da província é tido por curiosidade mais ou menos anedótica, protagonizada por personagens inevitavelmente superficiais, quando não caricatas. O outro é este, ou seja, o modelo catastrofista em que a província adquire os contornos de terra selvagem onde acontecem os desastres que atestam o seu primitivismo.

Não deveriam, então, as televisões dar conta do que "lá" se passa? Eis a pergunta de bom senso que acaba por contornar o que aqui se refere. De facto, o que se discute não é a evidência do acontecido nem a necessidade de o noticiar. O que se discute é esta redução da província a um espaço cíclico de desastre(s) que, afinal, nos é servido como uma espécie de purga simbólica para os desequilíbrios geo- gráficos e sociais.

Por tudo isto, a província emerge nos noticiários como uma espécie de velho filme de terror, um efeito especial das notícias do dia. E confesso que leio sempre nos rostos ansiosos dos repórteres esta mensagem pueril: "Isto é muito longe, não se preocupem." Sou injusto, eu sei. Mas são estes os limites do meu olhar provinciano.

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