"Esquerda! Esquerda, direita! Esquerda, direita, esquerda! A esquerda é uma metralhadora; a direita é um canhão!" As ordens do treinador Bruno Carvalho acompanham o ritmo frenético de Tomás Silva, que aos 14 anos é encarado como uma das grandes promessas do boxe português e candidato a uma qualificação para os Jogos Olímpicos. Estamos na fase do treino sombra, no pavilhão do Privilégio Boxing, clube da Póvoa de Santo Adrião fundado em 2003 e que se dedica ao boxe. Fazer sombra consiste em defrontar um adversário imaginário, aplicando golpes no vazio de modo a aperfeiçoar a técnica. Mesmo sem ninguém à sua frente salta à vista o empenho que Tomás coloca em cada murro, acompanhados de pequenos gemidos de esforço e das primeiras gotas de suor. O treinador assegura que não é por estarem jornalistas a assistir que a aplicação do jovem pugilista é maior: "É sempre assim, incansável. Tem uma intensidade de atleta de topo"..Tomás tinha apenas 7 anos quando apareceu pela primeira vez no Privilégio, com uma bola de futebol debaixo do braço. Bruno Carvalho recorda-se desse dia: "Começou a dar uns toques aqui no ginásio. Eu avisei-o que isto não era nenhum campo de futebol e, para o assustar, disse-lhe que o punha já a lutar com outro rapaz. A resposta dele foi: "Se quiseres vou já." Aquilo chamou-me a atenção e pedi--lhe para voltar no dia seguinte. Assim foi. Nos primeiros treinos viu-se logo que tinha jeito e hoje o boxe é a loucura da vida dele. O boxe reforçou-lhe a autoestima. É um miúdo que treina todos os dias, cheio de potencial". A "atitude" e o "atrevimento" de Tomás, aliados à capacidade técnica e física (1,75 m; 58 kg), fazem o treinador acreditar que o estudante do 7.º ano, o mais velho de seis irmãos, está destinado a grandes voos, sendo que a meta mais desejada são os Jogos Olímpicos, objetivo que, a concretizar-se, deverá ficar adiado para a edição de 2024, dado que em Tóquio 2020 o jovem pugilista ainda não terá idade suficiente para competir. O sonho olímpico é partilhado entre atleta e treinador. "Quero ir lá e ganhar. Acho que é possível se continuar a treinar todos os dias, como já faço hoje. Se saísse daqui não tinha mais nada para fazer. Seria muito difícil para mim passar sem o boxe. Quero fazer a minha carreira e não tenho um plano B", conta ao DN, recordando que tem vários títulos nacionais e regionais e apenas uma derrota em 30 combates disputados na categoria de infantis (subiu este ano a cadete). Tomás, que adotou a alcunha de "O Terrível" e mudou depois para "Pacquiao" (nome do histórico pugilista filipino que logrou ser campeão mundial em oito categorias diferentes), reconhece que o boxe lhe moldou a personalidade: "Era um pouco agressivo. Só queria andar à porrada. Mas o boxe tornou-me mais responsável.".Essa já é uma vitória para Bruno Carvalho. O treinador, de 40 anos, também ele um ex-pugilista olímpico e profissional (ver entrevista), assegura que mais do que os resultados desportivos o que se procura estimular no Privilégio são valores como a disciplina, a entreajuda e a confiança, até porque ao seu ginásio chegam crianças de vários tipos, das mais agressivas às que têm problemas de autoestima e muitas vezes são vítimas de bullying. "O boxe pode ajudar a corrigir algumas situações, mas a mudança está sempre nos atletas. O que tentamos ensinar aqui é a serem boas pessoas. Perceberem o valor da humildade, da persistência, do trabalho, da superação, do espírito de grupo. Depois, a criança, ao treinar, vai adquirindo ferramentas que vão reforçar a sua autoestima. Essa mudança de mentalidade pode acontecer em um segundo. Temos aqui uma menina chamada Mariana, que chegou cá com 14 anos, peso a mais e baixa autoestima. Mesmo dentro do grupo de rapazes e raparigas que cá treinam ela não era vista como uma atleta. Não era valorizada nesse aspeto. Até que um dia fez o seu primeiro treino-combate. E, num segundo, tudo mudou. Ela é uma fera em cima do ringue e quando desceu de lá era outra mulher. Continuava gordinha, mas a atitude dela conquistou o respeito de todos. Subiu pequenina e desceu grande.".Ansiosa por combater.Mariana é umas das 25 raparigas de um total de 86 pessoas que treinam no Privilégio. "Um grupo de amigos", diz Bruno Carvalho, que junta atletas dos 7 aos 60 anos, de vários estratos sociais. Foi há sete meses que a jovem de 15 anos, estudante do 8.º ano, começou a treinar boxe, chegando ao Privilégio através de um primo que já praticava a modalidade. Os pais consideraram que o desporto poderia servir dois objetivos. "A Mariana veio com a perspetiva de perder algum peso. Não era para combater, mas sim para fazer desporto. Com o tempo começou a dizer que queria combater. E nós deixámos, para ela cumprir esse sonho. Mesmo que me custe ver. Ainda há dias houve aqui um treino-combate e eu preferi ir para a rua. O pai é que ficou cá dentro, a filmar. Por outro lado, também vemos o boxe como uma forma de ela aprender a defender-se. Desde pequenina que sempre foi um pouco rebelde. Era daquelas miúdas que não levava desaforos para casa. Cheguei a ser chamada à escola, até na primária, por causa do temperamento dela. Hoje está bem mais calma. Não só devido ao boxe, mas também porque cresceu e ganhou maturidade", conta Elsa Santos, a mãe..O filho mais velho (19 anos) também veio para o ginásio. E agora a família quer trazer o mais novo. Asmático, também com peso a mais, há um outro aspeto que a mãe quer corrigir: acabar com a situações de bullying que o mais pequeno enfrentou na escola: "Ele só tem 8 anos, mas sempre foi muito alto e acanhado. O ano passado foi complicado. Chegaram a fechá-lo numa casa de banho e batiam-lhe, até meninos mais novos. Ao ponto de não querer ir para a escola. Cheguei a levá-lo para o futebol, mas só lá quis ficar dois dias porque não se dava com ninguém. Vamos ver como evolui. Pode ser que por ter aqui os irmãos se torne mais fácil.".No caso de Mariana, a opção pelo boxe revelou-se certeira. Não só perdeu peso, como ganhou o gosto pela modalidade. Agora, não esconde que está "ansiosa" pelo seu primeiro combate a sério, num torneio, o que deverá acontecer já em maio. Cumprido o ritual de enrolar fitas aos punhos para proteção, Mariana calça as luvas e prende o cabelo debaixo do capacete já com a ajuda do treinador. É das primeiras a subir ao ringue oficial do pavilhão de 400 metros quadrados, dotado de uma ampla sala de musculação, zona exterior para corrida e vários sacos de boxe e outros equipamentos técnicos espalhados pelo espaço. Quem sobe ao ringue está pronto a competir ou a querer passar um sinal ao treinador de que o quer fazer. Sempre que um novo aluno chega ao ginásio preenche um questionário onde fixa os seus objetivos. "Muitos dizem que querem competir, mas depois só ficam dois ou três", sublinha Bruno Carvalho, frisando que a maioria das pessoas que frequentam o ginásio o fazem pelo exercício físico (cada treino dura 70 minutos, sempre ao som de música e dividido em períodos de três minutos de trabalho físico e um de descanso). "Só luta quem quer e estiver apto", diz..Habituado à sensação dos combates está Hugo Amaral, 16 anos, aluno do 11.º ano e ex-campeão nacional de cadetes (subiu este ano a júnior). Treina no Privilégio com o pai (Hugo, 40 anos) e com o irmão mais novo (Ulisses), de apenas 7 anos. No dia em que o DN foi ao ginásio do Privilégio, a Sssociação Jorge Pina, atleta paralímpico português e ex-pugilista profissional (ver peça secundária), estava de visita com alguns dos seus atletas para treinarem combates. Hugo foi um dos escolhidos pelo treinador para "jogar" (forma como os pugilistas se referem ao combate), sempre sob o olhar atento do pai, que permanecia encostado ao ringue a observar todos os movimentos do filho. Durante um assalto, já cansado, o jovem atleta do Privilégio viu--se encostado às cordas e após um movimento em falso acabou por cair de frente. Levantou-se rapidamente, a querer continuar, mas nessa altura já o treinador dava ordens para se interromper o combate, ao mesmo tempo que o pai dava palmadas no tapete e gritava "acabou, acabou!" Observado pelo técnico, tudo estava ok. "São coisas que acontecem", diz o pai ao DN. Afinal, trata-se de um desporto de contacto e situações deste tipo são frequentes. Nada que afaste do pensamento de Hugo a vontade de singrar na modalidade, sem descurar o percurso académico. "Inicialmente, a minha ideia passava apenas por fazer desporto, estar junto dos meus amigos após a escola, num ambiente diferente. Mas, agora, comecei a construir uma carreira e gostava de continuar a progredir até porque sempre consegui conciliar o desporto com a escola. O boxe faz--me feliz e acho que isso também ajuda na escola, pois sinto-me bem comigo mesmo", explica, antes de apontar um futuro curso de Direito como uma hipótese que lhe agrada..Um centro de alto rendimento.Bruno Carvalho não esconde que a chegada de cada vez mais jovens ao boxe está mudar a imagem da modalidade. Para afastar a ideia de que se trata, apenas, de um desporto violento, o técnico convida todos os pais a assistir aos treinos para atestarem a segurança dos mesmos. Agora, o ex-atleta do Sporting quer aproveitar a onda para fazer no Privilégio "um centro de alto rendimento especializado em boxe"..O Privilégio Boxing Club nasceu em 2003, das cinzas da União Desportiva e Recreativa Casal do Privilégio. As instalações estiveram em risco de desaparecer, para dar lugar à construção de lotes para habitação social. A insistência de Bruno Carvalho em manter o projeto, os bons resultados desportivos (somam títulos nacionais por equipas em todas as categorias) e o valor acrescentado que trouxe à freguesia da Póvoa de Santo Adrião captou a atenção da autarquia de Odivelas. Numa primeira fase conseguiram cem mil euros através de orçamento participativo, que permitiram requalificar o pavilhão. A zona exterior também foi alvo de obras com apoio da câmara - o piso de terra batida foi asfaltado, servindo agora de pista. A última parte do projeto será avançar para uma cantina e edificação de alojamentos, numa área do pavilhão onde funcionava um café. "Tendo isto a funcionar podemos receber equipas estrangeiras, que depois podem treinar com os nossos atletas e participar em torneios realizados no pavilhão. Todas as partes saem a ganhar. Temos tudo o que precisamos para avançar", diz o treinador..A aposta na internacionalização do clube também está em marcha. Em dezembro de 2016, o Privilégio organizou a 4.ª edição do Odivelas Box Cup, o maior torneio de boxe olímpico em Portugal, que contou com a presença de mais de 150 atletas, representando 35 clubes de 15 países. Ao trabalho no ginásio, na seleção nacional e na organização de eventos desportivos, Bruno Carvalho junta as ações de formação a outros treinadores e a exploração de uma marca de material de boxe, a BC Boxing. Falta a cereja no topo do bolo: a qualificação de um atleta para os Jogos Olímpicos, feito que Portugal só conseguiu em Moscovo 1980 através de João Miguel, mais conhecido por "Paquito", ex-pugilista do Sporting. "Tenho a vida que quis ter. Faço o que gosto e consegui construir a carreira que ambicionava, faltando agora chegar aos Jogos Olímpicos. Era o meu sonho como atleta. E quando acabei a carreira a primeira coisa que disse foi que a minha missão seria, enquanto treinador, dar aos meus atletas a hipótese de lá chegar", conclui Bruno Carvalho.