Tóxico e fraudulento
Terry Branstad não dirá grande coisa ao leitor, mas, se lhe disser que é o governador na história americana com mais anos no cargo e o recém-nomeado embaixador na China, talvez desperte atenção. Governar o Iowa, visitado por Xi Jinping em 1985 e 2012, um estado com laços económicos relevantes com a China, também ajudou a estreitar relações com Pequim. Quer isto dizer que a administração Trump dará um contributo construtivo e desanuviador para a relação bilateral mais importante da geopolítica contemporânea? Não. Um embaixador não faz a primavera e crescem os sinais de hostilidade e inconsistência na política destinada à China.
Um presidente que vê a política internacional reduzida à lógica transacionável replicada do mundo dos negócios devia ser mais sensível aos méritos de um acordo como o TPP, desenhado para projetar a presença comercial americana no Sudeste Asiático, reforçar a rede de segurança através das alianças económicas e militares desenvolvidas por Washington, e conter os termos da ascensão chinesa, passem pela "Nova Rota da Seda" ou pelo "sonho chinês" de Jinping. Um presidente que sempre gostou de ganhar dinheiro devia ser contrário ao protecionismo e à guerrilha comercial, quanto mais não seja porque a globalização permitiu expandir os seus negócios pelos quatro cantos do mundo em condições que jamais encontraria noutro sistema. Um presidente que publicamente se entretém a incendiar a relação com Pequim - através da preparação metódica do telefonema com a presidente de Taiwan, acenando unilateralmente com barreiras às importações, ou nomeando dois falcões sinófobos para executar a sua política comercial (Wilbur Ross e Peter Navarro) - devia, em coerência, ser promotor de um acordo como o TPP que procura, habilmente, cercar as ambições chinesas. Isto sim, seria "fazer a América grande outra vez" e por muito tempo. Trump escolheu outro rumo: o da chico-espertice política.
Por razões meramente eleitorais, abraçou uma narrativa política que não encaixa no seu percurso empresarial. Ao longo deste, beneficiou da importação de matérias-primas baratas para erguer um império imobiliário, deve a milhares de imigrantes a força do seu modelo de serviços turísticos, criou empregos, faliu, internacionalizou os negócios, recorreu à banca americana e estrangeira para ampliar a riqueza, beneficiou sempre da livre circulação de pessoas e bens, e foi useiro e vezeiro em disparates sem nunca sofrer qualquer represália por isso. Trump é, no fundo, um produto excêntrico da globalização, das liberdades e libertinagens que a democracia liberal permite. A escolha de um cardápio eleitoral oposto a tudo isso só revela o carácter do político: fraudulento ao ponto de embrulhar tudo e o seu contrário para vencer a todo o custo (inclusive com ajuda externa), expondo a verdadeira natureza de uma administração que tudo fará pela sobrevivência no cargo (veja-se o que aconteceu à comissão de ética do Congresso) em detrimento da defesa dos interesses estratégicos do país.
E a prioridade estratégica dos EUA é salvaguardar a sua essência democrática e liberal para poder, em consequência, continuar a exercer preponderância numa ordem internacional assente nesses princípios. Uma coisa é conter um declínio relativo por que passam todas as grandes potências, outra é contribuir para que esse declínio se transforme numa decadência permanente. O que Trump simboliza politicamente e propõe desgarradamente ao mundo está mais próximo deste último sintoma do que do primeiro.
O segundo grande interesse estratégico dos EUA é acomodar a emergência de potências revisionistas, sem que isso mine a natureza da sua democracia e a sua preeminência global. A Rússia de Putin é, objetivamente, uma ameaça à primeira. A China de Jinping é o principal desafio na concretização da segunda e, por isso mesmo, exige paciência, consistência e sensatez. Se Trump está confortável no bolso de Putin, optou por definir a relação com a China como uma soma zero. Faz mal. Os primeiros danos colaterais vão ser o combate às alterações climáticas (que contribuíram para diversos conflitos e disfuncionalidades económicas), a acalmia comercial, a integração política e económica asiática, e a gestão conjunta da ameaça nuclear da imprevisível Coreia do Norte e do instável Paquistão.
Para conter, influenciar ou condicionar a China não é preciso torná-la um pária internacional, isolando-a como método punitivo. O que Washington devia fazer é precisamente o contrário: chamá-la ao centro das mais importantes decisões globais (Acordo de Paris, políticas do G20, proliferação nuclear); acolhê-la nas principais organizações (como fez na OMC, como devia fazer criando um conselho NATO-China); erguer uma comissão bilateral permanente que defina o quadro de interações conjuntas que equilibrem a interdependência económica e sustentem a estabilidade interestadual; e promover a ocidentalização das elites chinesas de forma a abrir progressivamente o regime, obrigando-o a ser mais transparente e previsível. Tudo isto, com mais ou menos sucesso, tem sido feito nas últimas três décadas. Trump é a rutura apressada com esta linha sem qualquer rede de salvaguarda para os EUA e aliados, asiáticos ou europeus.
Há dias, uns amigos chineses diziam-me que estavam definitivamente de saída da China a caminho do Canadá. Perguntei as razões. Apontaram duas: o agravamento da poluição na saúde pública e o medo de que Trump não tenha travões na confrontação com a China. Lidar com um elemento tóxico nas suas vidas ainda conseguiam, com dois ficou impossível.