Não há nem sinal de John Wick, mas há Nova Iorque e o seu submundo com exércitos invisíveis em cada esquina. Também ninguém está a pensar na reforma ou em vingar a morte do cão, mas um caso de justiça violenta, com outro motivo, acaba por se impor e desta feita é Winston Scott - aquele senhor que nos filmes John Wick comanda a "embaixada" onde os assassinos descansam - o homem mais procurado. Ou melhor, um jovem Winston Scott, que ainda nem sequer se encontra numa posição de poder. "Estou à frente deste hotel há 40 anos", dizia ele no primeiro filme. E terá sido esta frase o gatilho de The Continental: From the World of John Wick, a minissérie de três largos episódios que recua até à década de 1970 para explorar as origens dessa personagem essencial num mundo com regras muito próprias. Disponível agora na Prime Video..Poucos meses após o lançamento do quarto filme da saga John Wick (que se julgava ser o último mas afinal já se fala num quinto capítulo), a estreia de uma série que funciona como prequela e spin-off deste universo é a prova de que o conceito do realizador Chad Stahelski tem por onde crescer, para lá do magnetismo do anti-herói romântico de Keanu Reeves. Obviamente, conserva-se aqui algo da matéria-prima que compõe a linguagem dos filmes e a sua lógica de ação pulsante, porém, não se espere os bailados com arma soberbos e a economia de diálogos de Reeves (à exceção de dois irmãos assassinos que não pronunciam uma única palavra...). Este é um mundo separado pela porta de um hotel: dentro dele um mafioso pavoneia-se com o poder; fora dele haverá uma equipa em formação para o destronar. Ou, sem eufemismos, para o matar..Cormac, interpretado por um Mel Gibson em modo maníaco, surge então como o líder deste The Continental dos seventies e mentor dos irmãos Frankie e Winston, sendo também uma espécie de figura paterna para o seu fiel assistente Charon - esse assumido nos filmes, com postura imaculada, por Lance Reddick, o ator que faleceu pouco antes da estreia de John Wick: Capítulo 4. E é sobretudo a convergência dos destinos de Winston e Charon que a série narra: como é que Winston, que até aqui tínhamos visto encarnado com gravitas por Ian McShane, chegou a proprietário do hotel, acompanhado por Charon? Qual é o seu passado?.Não há muito que se possa revelar sobre os desenvolvimentos específicos dos três episódios, mas tudo anda à volta desse rapaz aprumado, de lenço ao pescoço e pose confiante, que busca alguma forma de sucesso na vida. Quando The Continental começa, ele vem de Londres para Nova Iorque a mando do chefão Cormac, que está de cabeça perdida com um roubo de Frankie, dando a Winston a missão de recuperar o valiosíssimo objeto roubado. Enfim, não será por aí que ele alcança o sucesso, mas isso nem sequer lhe ocupa as ideias no momento em que vai à procura do irmão excomungado. Há laços de família que estão acima das leis do submundo onde os dois se movem..A partir daqui vai-se esculpindo o perfil de Winston, que para os fãs importa que se assemelhe à versão madura da personagem, um indivíduo mais ou menos alheio às múltiplas situações de pancadaria... Nas notas de produção a que o DN teve acesso, com entrevistas anteriores à greve da SAG-AFTRA, Colin Woodell, que veste a versão jovem da personagem na série, sublinha o seu caráter distinto: "É isso que Winston tem de cool - ele é simplesmente inteligente. É astuto. Esse é o seu poder: em vez de dar porrada em alguém, supera esse alguém em inteligência.".Isto dito por um ator que soube captar as nuances do antecessor McShane, tentando acrescentar algo de seu à personagem. Seja como for, e para quem tem a memória fresca dos filmes, os olhos são o mais importante: "Quando se olha nos olhos de Ian McShane, há profundidade e tristeza - há uma grande história nesses olhos", nota o cocriador da série Kirk Ward..Várias outras personagens e pequenos enredos preenchem esta série que conta com Chad Stahelski entre os produtores executivos, a apadrinhar o projeto. Mas o terceiro protagonista dos três episódios de The Continental, para além de Winston e do hotel, é a Nova Iorque dos anos 1970, inundada por uma banda sonora a preceito (atente-se numa brilhante sequência de ação ao som de Without You, de Harry Nilsson, no segundo episódio) e concebida com a fibra noir que ajudou a estabelecer a imagem musculada dos filmes, na sua referência contemporânea. Neste caso, respeitando as cores dos seventies, há uma "energização" dos cenários exteriores e interiores que condiz com o mundo segundo John Wick, esse que nunca respondeu aos códigos limitados da realidade. O seu estilo de ação sempre assentou numa nota abstrata que permitiu algumas das melhores coreografias deste género de cinema nos últimos anos..Mas concentremo-nos na série. Existe neste universo um léxico que descreve o funcionamento próprio do submundo dos assassinos a soldo. A começar pela High Table, designação da "ordem mundial" dos assassinos, que implementa um conjunto de regras visando o controlo da violência, nomeadamente através de hotéis como The Continental. E nesses lugares de conforto - no fundo, embaixadas para os assassinos - tudo passa por um tipo de moeda sem valor monetário, que uma vez apresentada dentro do circuito dá acesso a qualquer coisa: desde um quarto no hotel a um contrato para matar alguém. Ora, é uma situação envolvendo as moedas que vai movimentar gente de má rês, e os outros, em The Continental....Mais uma vez: não estando ao nível de John Wick (tarefa difícil), não nos faz mossa dar um passeio neste imaginário que celebra as virtudes da ideia original, enquanto aprofunda a história de algumas personagens. E Winston, está visto, já era um senhor antes de o ser.