Taliban, multipolaridade e linhas vermelhas

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A dramática mudança de poder no Afeganistão impõe algumas reflexões.A primeira reflexão é que não é pela via militar externa que se consegue impor mudanças significativas num país, sem alterar fatores culturais e religiosos estruturantes. Já o sabíamos, mas nada como "ver claramente visto" nestes últimos dias no Afeganistão - cidade após cidade, até à capital Cabul, caíram como sucessivos castelos de cartas perante o avanço dos exércitos taliban. Um país repartido por lealdades tribais e de clãs, com a estrutura do Estado semidestruída, uma corrupção endémica até ao mais alto nível do Estado e alimentada pela ajuda externa, uma estrutura económica profundamente débil com uma enorme economia paralela e parte significativa da riqueza produzida ligada ao fornecimento de matéria-prima para a produção de ópio, tudo isto era sabido e de nada adiantou despejar um bilião de dólares no país. No final temos uma composição de forças algo diversa, mas poucas alterações no funcionamento do país, com exceção da situação das mulheres.

A segunda reflexão é que nenhuma grande potência tinha interesse neste desfecho; nem os EUA, nem a UE, nem a China, nem a Rússia. Do ponto de vista geo-estratégico é uma vitória amarga para o Paquistão que obtém agora o investimento de décadas no movimento taliban. Vitória amarga porque vem numa altura em que o seu crescimento económico no médio prazo está profundamente interligado à China e ao corredor paquistanês da nova rota da seda (BRI) e, por conseguinte, a estabilidade é essencial para este efeito. E no dealbar de um novo governo afegão, apesar do nacionalismo dos taliban, é pouco crível que as fações que vão continuar a guerreá-lo se fiquem pelo combate interno e olvidem a base de apoio principal pashtun e paquistanesa.

Uma terceira reflexão decorre da constatação de que, no mundo multilateral em que vivemos, também temos que contar com a vertente islâmica; a religião muçulmana é prevalecente ou relevante em dezenas de países e tem 1,8 milhares de milhões de crentes. Destes, uma pequena parte segue interpretações radicais ou fundamentalistas. O novo governo do Afeganistão é um destes poucos; mas relembremo-nos que não é o único e que alguns desses governos afirmam ser aliados ocidentais enquanto nas suas madraças se prega o ódio aos valores e ao modo de viver ocidental.

Para os taliban os valores e o modo de viver ocidental continuam a ser o inimigo - é bom que não nos esqueçamos disto e que o tenhamos bem presente quando delineamos as nossas políticas externa, de defesa e segurança.

Aceitar a realidade global de um mundo multipolar e díspar não significa que devamos prescindir de traçar linhas vermelhas.

Cada grande bloco traçará linhas vermelhas diferentes. Para a China e para os EUA é essencial que o Afeganistão não albergue grupos terroristas e que não seja origem de ameaças aos respetivos Estados. É importante que pelo menos a UE vá mais além. Que seja a voz pugnando pelos direitos das mulheres, das meninas e de outras minorias que são quotidianamente reprimidas nas áreas sob governo taliban e reafirmando a universalidade dos Direitos do Homem.

E que sejam negociadas rapidamente condições para que os afegãos que abraçaram valores ocidentais e estiveram a servir ao nosso lado possam sair para a Europa.

Consultor financeiro e business developer
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