Talassemia
O Diogo tem 2 anos mas já sabe que de três em três semanas precisa de ir a Coimbra «buscar sangue novo». Conhece os quatro cantos do hospital como se de uma segunda casa se tratasse. Tem uma talassemia «major», a forma mais grave da doença, diagnosticada aos dois meses. «Numa das consultas, a médica ficou muito apreensiva e pediu-nos para fazer um exame ao coração do Diogo porque ele tinha um batimento cardíaco muito acelerado. Inicialmente pensou-se que era um sopro. Mas no mesmo dia fizemos análises e foi aí que se descobriu o que o Diogo tinha», conta a mãe, Ana Catarina, de 31 anos.
Passou pouco tempo desde a primeira desconfiança até ao diagnóstico. «A médica sabia o que se passava mas foi sempre muito cautelosa, para não ficarmos alarmados. Mas não deixou de ser um balde de água fria. A única pergunta que me ocorria era “como é que isto acontece?” Depois da fase da revolta surgem estas questões, porque isto podia ter sido diagnosticado», conta Frederico, 35 anos, pai do pequeno Diogo.
Ana e Frederico não falam em negligência. Preferem pensar que aquilo que aconteceu foi um caso de «puro desconhecimento por parte da classe médica». No Hospital Amato Lusitano, em Castelo Branco, o caso de Diogo foi uma novidade.
«A informação sobre as talassemias em Portugal é muito insuficiente. A maioria das pessoas que são referenciadas para a consulta de Anemias Congénitas nunca ouviram falar deste tipo de doenças», explica Alexandra Pereira, 27 anos, médica interna de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar de Coimbra. E acrescenta: «Acho que a verdadeira aposta é a prevenção. Se conseguirmos identificar os portadores da doença, podemos identificar os casais em risco e oferecer aconselhamento genético e diagnóstico pré-natal. É mais fácil prevenir uma doença do que tratá-la.»
A talassemia consiste numa alteração hereditária da hemoglobina que faz que esta seja produzida em menor quantidade, podendo levar a uma anemia mais ou menos grave. «No caso dos portadores que têm as chamadas talassemias “minor” existem valores de hemoglobina normais ou uma ligeira anemia. Estas pessoas são assintomáticas e têm uma vida absolutamente normal, sem qualquer limitação. O diagnóstico de uma talassemia “minor” faz-se muitas vezes em análises de rotina. Na outra ponta do espectro temos as talassemias “major”, em que existe uma anemia grave e o doente fica dependente de transfusões. Os doentes com talassemia “major” são normalmente diagnosticados no primeiro ano de vida. Apresentam sintomas de uma anemia, atraso no crescimento, palidez acentuada e icterícia. Entre estes dois extremos temos as talassemias intermédias, em que o doente não tem uma anemia tão severa como nas formas “major” mas poderá eventualmente necessitar de transfusões durante a infância ou gravidez», refere Alexandra Pereira.
Ana Catarina diz que teve uma gravidez excelente. Sempre soube que era portadora de talassemia. O que não sabia era que Frederico também o era. «Mesmo sabendo que o meu marido também tinha uma talassemia “minor”, hoje casava-me outra vez. Isso não me interessa. Além disso, a parte da revolta já passou, até porque o Diogo é perfeito. Se tivesse algum problema, alguma deficiência, mas não tem. Não há nada que diga que ele tem talassemia. É mais branquinho, mas há muitas crianças branquinhas», diz.
Desde os dois meses que Diogo é sujeito a ciclos de transfusão e a um tratamento para retirar o excesso de ferro do organismo – o desferral, que é feito durante a transfusão com a mesma máquina que transporta o sangue. «A única diferença é que o desferral demora oito horas. O sangue é mais rápido. Temos sempre de esperar que o desferral acabe. Daqui a algum tempo vai tomar um comprimido meia hora antes do pequeno-almoço e, por enquanto, é a única coisa que sabemos. Às vezes, quando tentamos saber mais do que nos dizem, sofremos por antecipação», desabafa Ana Catarina.
Rita Fleming tem 58 anos e é médica no Hospital de Santa Maria desde 1983. «Agora começam a aparecer os quelantes orais. O doente, em jejum, dissolve os comprimidos, bebe e pronto, já está. Com o desferral tradicional acabam por desistir», explica.
E muitos desistem porque se trata de um processo demorado. Segundo Alexandra Pereira, «como o nosso organismo não tem forma fisiológica de eliminar o ferro, este vai-se acumulando em órgãos vitais como o coração, o fígado, o pâncreas e a hipófise e pode causar insuficiências. Por este motivo temos os chamados quelantes do ferro que promovem a sua eliminação através da urina ou das fezes. O primeiro quelante que surgiu no mercado é administrado em perfusão contínua entre oito a doze horas por dia. É um tratamento muito incómodo para o doente, levando por vezes a uma fraca adesão e mesmo a desistências. Com o aparecimento dos quelantes de toma oral melhorou-se não só o tratamento, mas a qualidade de vida dos doentes».
Ana Luísa já experimentou esta forma de tratamento oral em 2005: «Experimentei a deferiprona, mas comecei a sentir muitos efeitos secundários. Só daqui a algum tempo é que volto a fazer novos testes. Por enquanto, voltei à minha vida normal. Tenho uma bomba infusora em casa com a qual faço o desferral diariamente. Pico à noite a barriga e de manhã retiro. É subcutâneo. A minha primeira bomba foi das primeiras a chegarem a Portugal. Parecia um rádio enorme. Agora já as há pequeninas.»
Ana tem 33 anos. Começou a fazer tratamento aos seis meses. Aprendeu cedo a viver com a talassemia. Nos dias de tratamento, de 15 em 15 dias, chega ao Hospital de Santa Maria por volta das oito da manhã. Faz um hemograma para ver como estão os valores. Se tiver a hemoglobina muito baixa faz transfusão. Hoje não vai ser necessário: «Se fizesse transfusão só saía daqui às três da tarde, porque tenho sempre de esperar que o desferral acabe», diz Ana Luísa.
Nestes dias sente-se mais cansada, mas faz uma vida absolutamente normal. Trabalha como esteticista, é casada há oito anos e ter filhos faz parte dos seus planos: «O meu marido lida bem com tudo isto. Na altura, quando comecei a namorar, contei-lhe logo. Não sou a coitadinha, nem quero ser. Ninguém me trata de maneira diferente. Isto não me apareceu, é genético. Muitas vezes é o próprio doente que se autodiscrimina, porque isto não se pega.»
Ana Catarina partilha da mesma opinião: «Os casos reais são a melhor informação. E não são “coitadinhos”. São casos de crianças normais, iguais às outras. Quando o Diogo precisa de levar uma palmada, leva. E nunca o vou proibir de brincar com os amigos só porque tem talassemia.»
E se há casais como Ana Catarina e Frederico que encaram a talassemia como uma doença normal, falando abertamente sobre a situação, há outros que preferem não falar dela, mantendo o silêncio. Maria (nome fictício) tem 51 anos e descobriu que era portadora de talassemia aos 24, quando engravidou. Até então desconhecia a doença.
A anemia que desenvolveu durante a gravidez já se manifestava antes, mas nunca foi motivo de preocupação. Até um dia: «Praticamente no final do tempo, com uma grande barriga, lá vou eu para São José. Depois de esperar uma manhã, encaminharam-me para o serviço de Hematologia dos Capuchos. Marquei uma consulta à qual nem cheguei a ir porque entretanto tive o Gonçalo (nome fictício). Aos cinco meses e meio ele começa a ter sintomas que eu desconhecia, sempre muito amarelinho. Diziam que era por lhe dar muita cenoura.»
Depois começaram as febres altas e Maria percebeu que alguma coisa se passava. Fizeram-se as primeiras análises ao sangue e descobriu-se que o Gonçalo tinha uma anemia hereditária. Mas foi preciso um ano até se chegar ao diagnóstico completo.
Gonçalo nasceu com uma talassemia «major». A partir daí, seguiram-se tratamentos de seis em seis meses e consultas periódicas nas várias especialidades.
«Quando temos um casal em que um dos membros tem uma talassemia “minor” e o outro não, existe uma probabilidade de cinquenta por cento de a criança ter uma talassemia “minor”. Se no casal ambos são portadores, existe cinquenta por cento de probabilidade de a criança ter também talassemia “minor” e 25 por cento de hipóteses de nascer com a forma mais grave da doença», esclarece a médica Alexandra Pereira.
Gonçalo tem hoje 26 anos. Optou por deixar os estudos e começar a trabalhar. «Quando faz muito esforço, chega a casa com os pés inchados. Tem dias em que anda aflito da coluna», diz Maria. Conta que sempre teve de enfrentar uma grande batalha em casa por causa do desferral: «Tinha a minha sogra a dizer “não se faz hoje, coitadinho, faz-se amanhã”. E eu dizia “não, é hoje”. Mas não me arrependo, porque os exames que o Gonçalo tem feito estão bons e isso deve-se à minha persistência. As pessoas às vezes arranjam mil e uma desculpas para não fazer o desferral. No caso do Gonçalo, ou era porque lhe doía a barriga, ou porque tinha sono.»
Maria Conceição Maya é vice-presidente da Associação Portuguesa de Pais e Doentes com Hemoglobinopatias (APPDH) e sabe que a realidade em Portugal para estes doentes é muito diferente da dos outros países: «É muito difícil fazer uma comparação, porque em Portugal a talassemia é considerada uma doença rara e nos outros países não. O que posso dizer é que em termos de apoios sociais e de qualidade do tratamento e acompanhamento clínico não tem nada que ver. Nos outros países europeus estes doentes e as próprias famílias têm um suporte social que lhes garante uma subsistência condigna, na medida em que têm, pelo menos, habitação, alimentação e transportes assegurados. Além disso, ainda não há centros de referência para estas patologias e, apesar das excepções, há muito desconhecimento e pouco trabalho de equipa.»
Maria sempre sentiu falta do trabalho de equipa: «O meu marido e o meu filho são muito parecidos: Tanto um como outro preferem “enfiar a cabeça na areia” quando surgem problemas. Preferem não falar. Acham que faço demasiadas perguntas e que me preocupo muito. Hoje já me habituei. Nos dias em que o Gonçalo tinha de ir ao tratamento eu ficava sempre doente. Recordo-me de ele pequenito a olhar para mim e a dizer: “Oh, mãe, não fiques triste, que a gente agora só volta no mês que vem.” Tinha 4 ou 5 anos. Quando me lembro disto dá-me vontade de rir, porque em vez de ser eu a animá-lo era o contrário.»
Mas Maria não esquece aqueles tempos: «É uma vida inteira com uma angústia muito grande, numa constante luta contra o tempo. Não se sabe como vai ser o dia de amanhã. A terrível pergunta “vai durar até quando” persegue-me. Hoje, por exemplo, acordei às três da manhã, comecei a pensar nisto e não consegui dormir mais. É muito complicado...»
A falta de ajudas por parte do Estado não deixa saídas para as famílias portuguesas que têm de enfrentar a doença. «Não temos uma psicóloga para nos apoiar, só em casos excepcionais. Não temos apoio financeiro, nada. Doentes como o Gonçalo estão, supostamente, ao abrigo de um decreto que os torna isentos de qualquer taxa e do pagamento dos medicamentos comparticipados. De resto, os medicamentos não comparticipados são pagos na totalidade. Mas, quando tudo começou, lembro-me de que só o desferral era caríssimo, cerca de trinta euros. Cheguei a pagar a prestações na farmácia», conta Maria, revoltada.
Maria e Gonçalo, Ana Luísa, Ana Catarina, Frederico e Diogo conhecem bem a APPDH, a única associação em Portugal dedicada à talassemia. Criada a 19 de Novembro de 1992, tem actualmente 226 sócios, 56 dos quais são doentes. Maria teve conhecimento da Associação logo no início: «O meu médico falava-me nisso e dizia-me que não era a associação que devia vir ter connosco, mas sim o contrário. Não me recordo exactamente de como as coisas começaram, mas penso que a ligação mais forte se deu na altura em que tivemos de comprar a primeira bomba para o Gonçalo fazer o desferral. Até tive de pedir o subsídio de férias adiantado porque também não era comparticipada. Depois a associação começou a fornecer as bombas. Mais tarde, eu e o Gonçalo inscrevemo-nos como sócios.»
Ana Luísa também é sócia da APPDH. Diz que não tem qualquer ajuda por parte do Estado por ser doente de talassemia. É isenta por ter uma doença crónica, mas nunca pediu nada, nem beneficia de qualquer comparticipação: «Na associação disseram-me que havia uma qualquer facilidade em termos de IRS, mas tinha de preencher uns papéis em como era deficiente e eu achei isso… nem tenho palavras.»
De início foi difícil gerir todos os procedimentos, todas as rotinas às quais tinha de se habituar: «Era a minha mãe que me aplicava o desferral. Aprendeu com as enfermeiras em Inglaterra. Estivemos três semanas num hospital de lá a aprender. Quando vim para Portugal tinha de ir ao centro de saúde e eles não sabiam bem do que se tratava. A partir dos 11 anos comecei a fazer sozinha. É diferente. Somos nós que sentimos a nossa dor.»
Neste momento é a única doente com talassemia «major» no Hospital de Santa Maria. «Temos uma senhora com uns sessenta e tal anos que tem uma talassemia intermédia, e temos uma outra com drepanocitose ou drepanotalassemia que deve ter uns 38 anos. São as três que temos neste momento», diz Rita Fleming, médica responsável pela Imuno-Hemoterapia no HSM.
Se a talassemia pode matar pela cura, porquê prosseguir com as transfusões? «A resposta é muito simples», diz Alexandra Pereira, «pesando os riscos e os benefícios de transfundirmos um doente com uma anemia grave, o benefício é muito maior. Para além disso, dispomos de armas terapêuticas para tratar o excesso de ferro. Ainda não existe uma cura específica. Nos casos mais graves, poderá equacionar-se o transplante de medula óssea.»
O excesso de ferro no sangue pode afectar todos os órgãos, em especial o coração, o fígado e as glândulas endócrinas. De acordo com um dos representantes da última Conferência Internacional sobre Talassemia, que decorreu em Singapura, «a principal causa de morte nestes doentes está associada ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca em idade jovem. Desde que foram introduzidas as terapêuticas médicas que removem o excesso de ferro do organismo, a esperança média de vida destes doentes deixou de ser de apenas dez anos para podermos, hoje, conviver com doentes adultos, casados e com filhos. O importante é assegurar que todos os doentes com talassemia, em qualquer parte do mundo, têm acesso aos novos tratamentos».
Quando soube que o filho, Gonçalo, tinha talassemia «major», Maria sentiu que a relação com o marido mudou. Mudaram os olhares, as palavras, os gestos. Tudo mudou, para pior, diz: «Tentamos aceitar o dia-a-dia, mas acho que o meu marido se recusa a ver a realidade. Encarou a doença do Gonçalo de uma maneira muito má. Nem sequer me acompanhava às consultas. Fiz todo este trajecto praticamente sozinha. Apanhei com os baldes de água fria todos. Ele pura e simplesmente recusava-se a falar. Em parte ainda é tabu lá em casa, embora já participe um pouco mais e esteja mais atento. Nos primeiros anos, o facto de eu achar que o Gonçalo estava mais amarelito era mania minha», desabafa Maria.
Com o filho é a mesma coisa. Pouco muda. «Por isso é que estou sempre a matutar nas coisas, porque não tenho ninguém com quem falar. E, infelizmente, não podemos confiar em toda a gente para contar isto. No início da doença vivia com a minha sogra, que também não compreendeu ou não quis compreender. Disse que o mal era meu. Se o Gonçalo ficava pior, se tinha de ser internado, era por minha causa. Era tudo por minha causa. A culpa era minha. Quando comecei a fazer o desferral ao Gonçalo nem lhe conto. Picar um filho é uma coisa horrorosa. Tive de aprender sozinha, mas não conseguia fazer mais nada. Toda eu tremia. Foi aí que o meu marido começou a colaborar mais.»
Ana Catarina e Frederico querem dar um irmão ao Diogo, mas não para já. Sabem os riscos que correm e preferem esperar. Ana Luísa também quer adiar a decisão de ser mãe, por enquanto.
Maria percebe os motivos que movem estes pais, porque a luta que lhe consome o dia-a-dia já tem quase trinta anos: «Os doentes de talassemia não morrem da doença, morrem da cura. Só peço que ele não sofra quando assim tiver de ser. Ver o meu filho definhar numa cama… não consigo. É muito doloroso. Deus dá-nos forças para tudo, e pode parecer egoísmo o que vou dizer, mas às vezes peço para ir eu primeiro.»
O que é a talassemia
Talassemia vem do grego thalassa, que significa mar, e da palavra anemia, que é sangue fraco. Também conhecida como «anemia mediterrânica», faz parte de um grupo de doenças genéticas do sangue. Quem tem esta doença não consegue produzir a hemoglobina normal, imprescindível à produção de glóbulos vermelhos saudáveis. Por isso, desenvolve anemia desde muito cedo, necessitando de transfusões de sangue regulares. A anemia prolongada leva a alterações na face, deformações ósseas e aumento do fígado e do baço.
Foi em 1929, através da investigação realizada pelo pediatra norte-americano Thomas Cooley, que surgiu a primeira descrição de um doente com talassemia – daí que a talassemia seja também conhecida por «anemia de Cooley». «Nessa altura, os doentes não eram tratados, ficavam com anemia aos seis meses e morriam aos dois anos. Na década de sessenta aparece o desferral. Antes morria-se muito de insuficiências cardíacas. Hoje há doentes a viver até aos cinquenta anos. E pode viver-se muito mais se se fizer tudo direitinho», diz Rita Fleming, médica responsável pelo Hospital de Dia de Imuno-Hemoterapia do HSM.
Para mais informações sobre a doença, pode consultar o site da Federação Internacional de Talassemia em www.thalassaemia.org.cy ou entrar em contacto com a APPDH em sede@appdh.org.pt ou do telefone 217508124.