Suíça. De Solothurn a Balmberg, a memória de Joaquim Agostinho

Mala de viagem (172). Um retrato muito pessoal da Suíça.
Publicado a
Atualizado a

No ano de 1972, na Suíça, corria Joaquim Agostinho, o maior ciclista português na época e de todos os tempos. Envergava a camisola de Van Cauter-Magniflex-de Gribaldy. De 15 a 23 de junho, o "Tour" helvético animava as estradas, e a etapa 3 foi um contra-relógio de 12 quilómetros, entre Solothurn e Balmberg, na parte germânica do território. Curioso é que, meio século depois, descrevo a minha estada nessa cidade, realizada há poucos anos, a partir do inesperado. Um alfarrabista da parte velha da cidade vendia diversas revistas antigas, entre as quais uma que mostrava o nosso Joaquim Agostinho, quando acabara de vencer esse contra-relógio de montanha. Mostrei interesse e apresentei-me ao vendedor, que aparentava ser da minha geração. Nesse instante, surge um homem mais velho, o seu pai, que se lembrava dessa etapa e da surpresa de ver ganhar um ciclista luso. Na época, já se contavam muitos portugueses a trabalhar na Suíça, mas ali nem tantos. O ídolo do ciclismo suíço era Louis Pfenninger, que já vencera no seu país em 1968 e voltaria a ser vencedor nesse ano de 1972. Nem mesmo ele superou Agostinho nessa mítica etapa curta de montanha, mas dura. Depois da amena conversa, não fui capaz de trazer a revista. Os olhos do dono mais velho daquela casa brilhavam enquanto elogiava o corredor português. Seria justo que a imagem impressa de Agostinho ficasse com ele. Saí e fui dar uma volta pela cidade, que ostenta uma combinação arquitetónica de estilos e cuja salvaguarda patrimonial já foi premiada. Encontrei um recanto tranquilo junto do rio Aare, como se estivesse na presença do nosso ciclista para conversarmos. Aquele diálogo com o dono da loja motivou-me as minhas recordações ainda vivas, bem como a vontade de fazer os 12 quilómetros que Agostinho fizera em 27 minutos e 15 segundos, numa das estradas mais íngremes da Suíça e um mês e meio depois de lhe ter sido diagnosticada uma comoção cerebral pela queda na "Vuelta". Memórias preservadas, tais como as daquela cidade. Porém, estas podem-se tocar e sentir na pele, as de Agostinho apenas nos tocam o coração. Nessa etapa, ele não estava condicionado a interesses de equipa, corria consigo próprio. Muitas são as histórias em que a sua força o puxava para a frente do pelotão e ia de abalada, mas quantas vezes era impedido de o fazer por dever de equipa. Conta-se que em Mulhouse, na França, não se conteve e lançou um poderoso ataque, montanha acima, que só terminou quando chegou o carro de apoio da equipa BIC, cujo diretor lhe ordenou que parasse. Sempre foi o aguadeiro das equipas estrangeiras, para trabalhar para o líder. Ganhava mais, mas nunca atingiu o número de vitórias que a sua força lhe permitia. Há quem diga que estava ao nível de Eddy Merckx, com a diferença de que este tinha uma equipa a trabalhar para ele. Conta-se, também, que numa etapa em que Agostinho atacou, Merckx ficou sem reação. No fim da etapa, disse que tinha tido pena do belga, com a humildade que sempre o caracterizou. O português era dono dos músculos que dinamitavam o pelotão. Merckx dizia que se Agostinho tivesse começado em criança, como ele, ninguém o batia, ou talvez sim, se não fosse rebocador de líderes. Começou tarde. Conta-se que a sua primeira corrida foi a 25 de dezembro de 1967, em Torres Vedras, como individual, e logo deu nas vistas. Em 1979, ganhou a etapa de sonho de qualquer trepador. Deixaram-no ir, quando ganhou destacado a mais difícil etapa da Volta a França, em L'Alpe d'Huez, ainda me lembro de acompanhar em direto pela rádio. Ele tinha uma força do outro mundo, mas era deste pequeno mundo português e foi humilde até à morte. - "Os campeões são eternos!", disse-me aquele vendedor de publicações antigas em Solothurn. E eu digo que os melhores são sempre alvos a abater. Antes de partir, ainda fiz a subida até Balmberg, de carro, mas Joaquim Agostinho venceu-me, de bicicleta.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt