A argumentista Shonda Rhimes, 40 anos, foi considerada uma das cem artistas e entertainers que mais ajudaram a moldar o mundo em 2007. Ganhou um Globo de Ouro para melhor drama com Anatomia de Grey (Fox Life, quintas-feiras, 21h25) e, no entanto, não tem resposta quando lhe perguntam o porquê do êxito da série, um caso de boas audiências e boas críticas desde a estreia, em Março de 2005. Nada tem de especial ou de novo, admitiu à revista Broadcasting and Cable: «Gosto sempre de dizer que não é sobre os pacientes e a cirurgia, mas sobre o que o médico sente em relação aos pacientes e às cirurgias», avançou na mesma entrevista. Anatomia de Grey, conta a lenda, esteve para se chamar tão simplesmente Complicações e depois decidiu-se fazer uma brincadeira com o título de um dos mais populares livros de medicina de sempre, da autoria do médico inglês Henry Gray - agora figura na lista de dez programas mais vistos da década. O episódio que juntou mais espectadores teve uma audiência de 38,8 milhões de pessoas (aproximadamente o número de habitantes de Espanha) e foi para o ar em Fevereiro de 2006, após a final da Superbowl, o maior evento desportivo dos Estados Unidos. À sétima temporada - no ar desde o fim de Setembro (e há duas semanas em Portugal) - os números rondam 14,3 milhões (mais do que o número total de habitantes de Portugal) e as interrogações mantêm-se. O que é que os internos de Seattle Grace têm? .O protagonismo das mulheresSer mais uma história da vida das personagens do que sobre medicina pode ser o íman que atrai os espectadores, sustenta Elisabeth Barnet na tese Dissecting Medical Dramas. Mais: é na familiaridade dos cenários, histórias e personagens que está o que cativa os auditórios, acrescenta a autora na sua análise às séries ambientadas em hospitais. Na ressaca do aparecimento de Sexo e a Cidade, onde as mulheres ganharam o protagonismo total da trama, outro autor, Aaron Barnhart, defende o êxito da série baseado na divisão de géneros: «Os homens médicos são acessórios da estrela, Ellen Pompeo, que interpreta Meredith Grey.» E se já tem poucos homens, poderia ter ainda menos. A personagem do dr. Alex Karev (Justin Chambers) esteve para não existir. Foi escrito mais tarde com o objectivo de equilibrar, e criar alguma competição, com George O"Malley (T.R. Knight), no grupo dos estagiários. Como Patrick Dempsey, Derek Sheperd na série, poderia não ter estado na série se tivesse sido escolhido para o papel de Chase na série Dr. House.Do que não restam dúvidas é de que há sempre espaço para séries com médicos. E depois, há uma que marca a década. Se Anatomia de Grey, com as suas audiências, se arrisca a ficar com o título para os primeiros dez anos do milénio, Serviço de Urgência (1994-2009), criada por Michael Crichton e co-produzida pela Amblin Entertainment de Steven Spielberg, foi uma pedrada no charco nos anos de 1990. Além de ter dado ao mundo George Clooney, inovou na forma de filmar em televisão. Fale-se ou não de séries médicas. Também está entre as mais vistas da década, com 39,4 milhões de espectadores (a lista é da revista Hollywood Reporter, foi publicada no final de 2009 e mantém-se sem alterações). E se recuarmos aos anos de 1980, há quem se lembre de Dougie Howser M.D. (Menino Doutor, em Portugal), em que um adolescente sobredotado (Neil Patrick Harris) se licenciava em medicina. Dos anos de 1970 ficou o humor de M.A.S.H. e nos anos sessenta Richard Chamberlain chamou a si o título de primeiro médico da TV como protagonista da série Dr. Kildare. Mas é nos anos cinquenta que se encontram as primeiras tentativas de ficção desta... febre.O primeiro a diagnosticar a «doença» foi o teórico da comunicação Marshall McLuhan na sua obra Understanding Media (1964), prevendo grande êxito para as séries em ambiente hospitalar. É um media que «cria uma obsessão pelo bem-estar físico», defendia, dizendo que o género rivalizava com o western. A história não o desmente. Já foram exibidos inúmeros programas do género e as actuais grelhas de programação só confirmam a tendência, bastando ver o número de dramas médicos no ar nos canais de subscrição distribuídos em Portugal: Nip/Tuck, Médicos e Estagiários, Nurse Jackie, Mercy, o espanhol Hospital Central ou Clínica Privada (desdobramento de Anatomia de Grey) e Dr. House, que merece um capítulo à parte quando se fala deste género. .A originalidade de HouseHouse M.D., no título original, foge a todas as regras. Onde está o médico que cura com a sua sensibilidade e que é ele próprio a imagem da saúde? A enfermeira atraente? O velho médico sábio que orienta os mais jovens? Dr. House subverte a ordem estabelecida. O protagonista, interpretado por Hugh Laurie, é o anti-herói por excelência e a série é o seu antigénero. House não é convencional, não veste bata branca, é doente, os seus métodos não são habituais e as doenças muito menos. Numa época em que existem cada vez menos fronteiras entre os géneros televisivos (CSI e Ossos, por exemplo, são mais ciência ou mais polícia?), pode mesmo questionar-se se esta é realmente uma série de médicos, na medida em que House se porta mais como um detective, ainda que de doenças, do que como um clínico. De resto, o paralelo entre House/Sherlock Holmes e Wilson/Watson, já foi traçado. Para lá do género televisivo, vários estudos sublinham que as séries de médicos mudaram a relação dos pacientes com os clínicos, logo que a ficção em ambiente hospitalar se instalou. Ficou famosa a frase do protagonista da novela All My Children, Peter Bergman, num anúncio de televisão de 1986 para o spray Vicks: «Não sou médico mas faço um na televisão.» A doutrina diverge quanto à utilidade e benefício desta ficção para pacientes e médicos. Um estudo americano realizado entre os espectadores de Serviço de Urgência concluía que 53 por cento dos inquiridos se sentiam mais informados sobre temas de saúde. Em contrapartida, especialistas norte-americanos chamam a atenção para as expectativas irrealistas que as pessoas criam em torno das doenças. «Há a pressão para se usarem tratamentos muito agressivos que quase sempre funcionam [na televisão], o que é irrealista», notou Andrew Holtz, jornalista especializado em assuntos médicos e autor de um livro sobre a série House. Já este ano, o congresso anual do Royal College of Nursing do Reino Unido, concluiu que as medi-dramas fizeram disparar o número de queixas contra profissionais de saúde, precisamente porque a televisão faz parecer que são possíveis todos os milagres. «E os advogados fazem crer que se isso não acontecer as pessoas serão devidamente compensadas», queixou-se um dos enfermeiros, numa constatação que deu voz à indignação da classe.Com ou sem expectativas, o facto é que as séries de médicos estão bem e recomendam-se. E a autora de Anatomia de Grey criou mais uma para a ABC. Chama-se Off the Map, estreia em Janeiro de 2011 e pretende ser uma história sobre dois médicos que se mudam para uma ilha isolada. A mesma cadeira norte-americana tem ainda em preparação uma série sobre uma neurocirurgiã, Body of Evidence. Na CBS, mas ainda sem título, prepara-se uma série sobre uma equipa de médicos cuja missão é percorrer os EUA a ajudar quem mais precisa. Portugal não vai ficar fora de rota e está prevista a estreia da série Maternidades, para a RTP1. Para a RTP2 deverá ficar reservada a nova temporada de Anatomia de Grey, à semelhança do que aconteceu com as anteriores.