Ser ou não ser Madonna

Quem é a Material Girl que marca a história moderna da música pop e, mais do que isso, a evolução das formas e conceitos do mundo do espetáculo? Madonna faz 60 anos e o seu universo de imagens e sons continua a desafiar certezas e ideias feitas
Publicado a
Atualizado a

Há poucas semanas, o Centro Pediátrico da Fundação Raising Malawi comemorou um ano de existência. Nos primeiros seis meses, nele se realizaram mais de duzentas intervenções cirúrgicas, tendo a unidade de cuidados intensivos tratado cerca de meia centena de pacientes. Em atividade há mais de uma década, a fundação nasceu com o objetivo de assistir as crianças daquele país do sudeste africano cujos pais morreram de sida (mais de um milhão de crianças do Malawi perderam o pai ou mãe devido à doença). Além do seu hospital pediátrico, construído de raiz, a fundação mantém centros de acolhimento para os órfãos, tendo também ajudado a desenvolver uma rede escolar que integra cerca de dez mil crianças, metade das quais do género feminino.

Todos sabemos que Madonna esteve no centro de uma recente polémica sobre um conjunto de lugares de estacionamento para automóveis junto da sua casa em Lisboa. Atrevo-me a supor que nem todos saberão que a Fundação Raising Malawi foi criada por Madonna, em 2006.

Receio que tal discrepância informativa seja mais reveladora das nossas vivências mediáticas e do nosso imaginário social do que, propriamente, da personalidade e do trabalho de Madonna. Em qualquer caso, permito-me sugerir que sigamos o voto de Charles Baudelaire quando exaltava a possibilidade de a crítica ser "parcial, apaixonada e política" - celebremos apenas a criadora de Material Girl e o seu 60.º aniversário (nasceu a 16 de agosto de 1958, em Bay City, no estado do Michigan).

"Como uma virgem"

Em boa verdade, a questão da identidade - entre o ser e o parecer - sempre foi matéria visceral do trabalho criativo de Madonna. E convém não sermos cínicos, ou apenas distraídos: a pedra-de-toque de tal questão é a sexualidade.

Estamos a falar, afinal, da mulher que se transformou em ícone global da cultura pop através de canções como Like a Virgin (1984), confessando ao seu amante que ele a fez sentir "como uma virgem/ tocada pela primeira vez". De facto, era também uma nova forma de romantismo, descomplexado e irónico, já que nos versos que nunca são citados ela acrescentava que tal acontece "quando o teu coração bate/ junto ao meu".

Mas o romantismo, nostálgico ou apenas evocativo, não basta para caracterizar a sexualidade no universo de Madonna. E, se outras razões não houvesse, o livro que lançou em 1992 - com o título Sex - seria suficiente para nos recordar que não estamos exatamente perante uma brincadeira de crianças. Porquê? Porque o que aí encontramos está muito longe de se poder reduzir a uma coleção de "nus artísticos"... Aliás, sublinhando o radicalismo do empreendimento, ela foi clara no seu agradecimento ao fotógrafo do livro: "Acima de tudo, obrigado a Steven Meisel por não ter medo quando eu tive."

Medo? É verdade: o sexo faz medo. E talvez seja essa a contradição visceral do universo criativo de Madonna: por um lado, ela é a expressão direta, desassombrada e festiva de um tempo em que encaramos a instrumentalização da sexualidade (veja-se a coleção quotidiana de horrores do Big Brother televisivo e seus derivados) como coisa indiferente, em relação à qual só podemos ser superiores; por outro lado, desde a sua elaborada iconografia até às palavras das canções, Madonna desmonta tudo isso enquanto criadora de ficções enredadas no medo de ser ou não ser.

A paisagem musical de Madonna evoluiu mesmo no sentido de uma crescente pessoalização do seu trabalho. Claro que há imagens que, literalmente, fizeram história, sobretudo nos tempos heroicos da MTV - lembremos a "duplicação" de Marilyn Monroe no teledisco de Material Girl (1985), a encenação de Express Yourself (1989) em cenários que citam o clássico Metropolis (1927), de Fritz Lang, ou a coreografia de Vogue (1990), cruzando elementos do classicismo de Hollywood e da cultura gay. Ao mesmo tempo, as canções vão contando uma história de assumida ambiguidade: a vedeta planetária reflete sobre os limites da sua própria celebridade.

"A minha religião"

O álbum Ray of Light (1998), porventura o objeto mais perfeito da sua discografia, é exemplar desse processo de crescente introspeção, por vezes marcado por pontuações de cristalino dramatismo. Lembremos, em particular, o tema de abertura, Drowned World/Substitute for Love. Refletindo a sua consagração como estrela global, Madonna canta versos de inequívoco desencanto. Por exemplo (numa tradução apenas tão literal quanto possível): "Viajei à volta do mundo/ À procura de uma casa/ Descobri-me em salas cheias/ Sentido-me tão só."

No teledisco dessa canção, Madonna encenava mesmo os sinais mais evidentes do seu desgaste, surgindo como uma estrela perseguida por um bando de paparazzi. Em fuga dos flashes das máquinas fotográficas, víamo-la circular como uma sonâmbula por uma festa, no final regressando a casa, acolhendo nos seus braços uma menina. Os dois versos finais sobrepunham-se a um grande plano de Madonna a abraçar a criança. No primeiro, "agora, descobri que mudei de ideias", mantinha os olhos fechados; abria-os e declamava o segundo verso, diretamente para a câmara: "Esta é a minha religião" - o teledisco surgiu no verão de 1998, menos de dois anos depois do nascimento de Lourdes Maria, primeira filha de Madonna.

Ray of Light integra, aliás, uma canção dedicada à filha, Little Star, e uma outra, Mer Girl, cujo negrume não poderá deixar de surpreender todos aqueles que encaram o universo pop como uma coleção de futilidades escapistas. Para além da sua rarefeita ambiência instrumental e da ousadia da sua estrutura (quase em spoken word), Mer Girl tem qualquer coisa de balada de filme de terror, assombrada pelas memórias trágicas da mãe, falecida aos 30 anos, vítima de cancro, alguns meses antes de Madonna completar 6 anos: "Fugi da minha casa que já não me contém/ Do homem que não consigo conservar/ Da minha mãe que me assombra, embora já tenha partido/ Da minha filha que nunca dorme/ Fugi do ruído e do silêncio/ E do movimento das ruas."

Muito marcado pela ligação criativa com o músico e produtor inglês William Orbit, Ray of Light ilustra um momento altamente sofisticado de experimentação, ao mesmo tempo funcionando como uma espécie de revisão de um trajeto de 15 anos (o primeiro álbum, intitulado apenas Madonna, surgira em 1983) que valeu a Madonna o título simbólico de "rainha da pop". No limite, Ray of Light parece prenunciar aquele que continua a ser o álbum mais pessoal, e também mais confessional, de Madonna: American Life (2003).

"O Sonho Americano"

Madonna nunca abandonou o seu país, mas é um facto que, a certa altura, algo se quebrou na sua relação com os EUA, algo que está sinalizado de forma muito crua no álbum American Life. O tema-título tornou-se mesmo uma bandeira paradoxal do seu ceticismo enquanto cidadã. Num teledisco de ambiência surreal, a canção apresentava-se transfigurada em cruel passagem de modelos, parodiando o militarismo mais desenfreado. Na altura, a acesa polémica que suscitou foi perversamente empolada pela invasão do Iraque, ordenada por George W. Bush: Madonna optou por fazer uma declaração, sustentando a legitimidade artística do teledisco, reiterando também o seu respeito pelos soldados norte-americanos; em última instância, preferiu retirar o teledisco de circulação (em qualquer caso, American Life, por certo uma das obras-primas da sua videografia, é de fácil acesso no YouTube).

Dir-se-ia que American Life foi o terceiro capítulo de um processo de crescente afastamento simbólico entre Madonna e o imaginário (ou a imaginação) do seu próprio país. O primeiro está ligado à publicação do livro Sex e ao lançamento simultâneo do álbum Erotica (1992). O segundo, por mais desconcertante que isso possa parecer, terá sido o filme musical Evita (1996), dirigido por Alan Parker: vencedora de um Globo de Ouro pela sua composição de Eva Perón, Madonna ficou de fora das nomeações para os Óscares, uma ausência que foi lida por muitos (porventura a começar pela própria) como um gesto de marginalização por parte da comunidade de Hollywood.

Estranhamente, ou talvez não, as três canções que abrem o álbum parecem organizar-se como outros tantos contos morais sobre esse distanciamento. Mesmo ignorando a contundência visual do respetivo teledisco, American Life tem qualquer coisa de rap desafiador e contundente: "Quero exprimir o meu extremado ponto de vista/ Não sou cristã, não sou judia/ Estou apenas a viver o Sonho Americano/ E acabo de descobrir que nada é o que parece." Segue-se Hollywood, em que, com agudo sarcasmo, a cantora se pergunta "como é que pode ser mau, quando parece tão bom?". Enfim, em terceiro lugar, deparamos com a calculada irrisão de uma canção que se chama I"m So Stupid: "Sou tão estúpida/ Porque me habituei a viver/ Num sonho confuso/ Costumando acreditar/ Nas imagens bonitas/ Que me rodeavam."

"Eu sou assim"

Depois de experiência tão confessional, há qualquer coisa de bizarro no facto de o álbum seguinte, lançado em 2005, se ter chamado Confessions on the Dance Floor. Também aqui a ambiguidade era procurada. Temas como Hung Up ou Get Together envolvem claros sinais de retorno à música de dança das décadas de 70-80 (Hung Up integra mesmo um sample de uma canção dos Abba). Mais para o final, volta a emergir um discurso de intransigente individualismo. Em Like It or not, a mensagem não podia ser mais clara: "Eu sou assim/ Podem gostar ou não/ Podem amar-me ou deixar-me."

Há, talvez, outra maneira de dizer isto. E leva-nos ao cerne daquilo que é, ou pode ser, a exposição pública de uma pessoa cuja identidade se exprime (e reinventa) através de uma obra imensa. A saber: ser uma entidade reconhecível no mundo inteiro, por outras palavras, ser um verdadeiro ícone do espetáculo, não é coisa que se possa sustentar através de uma mera atitude confessional.

Confessar pode ser também uma forma de ocultação: é escolher uma atitude, uma encenação, uma pose ("strike a pose" é o seu lema em Vogue), valorizando-as em detrimento de outras soluções - como numa infinita transfiguração teatral.

Camille Paglia disse-o de forma especialmente incisiva num célebre e polémico artigo publicado no The New York Times (14 dez. 1990), reagindo ao facto de a MTV ter recusado passar Justify My Love, por certo um dos telediscos mais explicitamente sexuais de toda a obra de Madonna: "O feminismo americano contemporâneo, que começou por rejeitar Freud devido ao seu alegado sexismo, acabou por se afastar das ideias de ambiguidade, contradição, conflito e ambivalência. (...) Madonna tem uma visão muito mais profunda do sexo do que as feministas. Ela vê tanto a animalidade como o artifício. Mudando de estilo de guarda-roupa e cor de cabelo praticamente uma vez por mês, Madonna encarna os eternos valores da beleza e do prazer. O feminismo diz: "Abaixo as máscaras." Madonna diz que nós não somos nada a não ser máscaras."

Enfim, lembremos apenas que não estamos a falar de uma estrela instantânea, muito menos efémera. Os números não falam por si, mas estão longe de ser banais: 13 álbuns de estúdio, sete dezenas de telediscos, uma filmografia de mais de 20 títulos e dez das mais elaboradas e complexas digressões internacionais, de The Virgin Tour (1985) a Rebel Heart Tour (2015-16), algumas delas, como a Drowned World Tour (2001), verdadeiramente revolucionárias em termos cenográficos e técnicos. Convenhamos que não é pouco. E que aquilo que está em jogo não se confunde com um problema de estacionamento.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt