Semanologia. Um dia conseguido

Publicado a
Atualizado a

Foi no sábado passado. Adormeci tranquilo e ao acordar, de manhã, disse: não tive sonhos bons ou maus!

A viagem noturna, aconteceu na ausência do sobressalto, ressoando em alguns caminhos que não se cuida. Ao tempo do percurso, aquietou-se o corpo e o espírito.

Abertos os olhos, tocou-me uma luz, ténue, matinal, vinda de longe, anúncio de uma solar mensagem sobre a amplitude. Cada fração iluminada dos recortes angulares da janela, entre persianas e outros véus, grão cintilante chegado de longínquas galáxias.

A luz vem de um tempo longo, nasce, cresce, extingue-se, é testemunha da imensidão, festim para lá da experiência humana. Nesse quando, vendo-a moldar o meu quarto, fui límpido e quase transparente. O brilho das estrelas tocou-me a carne e, nela, o reparo - surpreendo-me nas rugas sob os olhos e as dobras flácidas nas pálpebras. Procuro o verde menino em mim e sou já outro, mas estou aqui, dentro (quando me organizei como homem guardei a infância).

Menino e homem, acordei, viajante para lá da viagem. A terra faz o seu caminho, o seu tempo, e aqui, na pele que trago, já saí e entrei, tantas vezes, nos emaranhados universos do breu e da aurora, de todos os breus e auroras que vivi. O último sábado veio com alvura e negritude singulares, uma álea desprovida de adjetivos, substância coerente, completa, dentro e fora, até arribar, entre lençóis, cobertas e almofadas, às oito e meia da manhã.

As horas marcos das estradas - passam, amiúde, velozes. Sem nelas pousar, necessariamente, a compreensão, pode perder-se o rumo ou a razão de um livre deambular, labirintos sobre os desertos e os prados verdejantes, entre os céus e os mares.

Acordei no sábado, não tinha mais saber que quando me deitei na sexta-feira. Todavia, esse estado não me incomodou.

Tive um anúncio interior, dizendo que o dia seria conseguido. Eu, agora quase geronte, pudesse cuidar de todas as idades dentro de mim, quietamente apascentar o tempo por vir sem pânico, angústia, mal-estar. Os minutos vividos, imperturbáveis, com alegria, até que, completo o calendário, o sono, aberta e prazerosamente, possuísse o corpo e a alma, nem pedindo contas ou desejando respostas.

Mesmo assim, a cada meia hora dobrada, como uma esquina para outra rua, perguntava-me se a beatitude, a graça de acordar em paz, poderia ser perturbada ou destruída.

Não controlo, não domino, não conheço, não sei a maior parte das coisas em torno. O terreno sobre o qual tenho alguma ciência é uma colina em que posso colocar um horizonte e outras linhas se desenham, tantas quantas as expectativas humanas, numa paisagem de geografias múltiplas e onde não há universais, só perplexidades, a distância, a possibilidade do abraço. A distância, não é um limite, é elemento constitutivo da existência e esta, um lugar que pode ser amorosamente habitado.

No sábado passado, nada me perturbou, a dor guardada. Age a dor como uma agulha, e por ela muito se tece. É inevitável, melhor reconhecê-la e vestir o seu casaco. Só que há dois dias, não fez parte dos agasalhos, ficou no armário. A sua memória relevou a minha alegria. O espanto da sua ausência foi parte da jornada. Um espanto a sustentar o quotidiano conseguido, há-os que são dádivas.

O sábado estava quase a concluir-se e eu, perguntando-me pela quebra, a falsidade, a agressão, que colocassem uma pequena ou grande ruína no caminho percorrido.

Até que a consciência, docemente, se extinguiu no espírito, e o sono me levou.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt