"Se os meus motoristas sabiam, os EUA não sabiam que Bin Laden estava ali?"
Porque é que as notas de reportagem estiveram 20 anos na gaveta? Ou, dito de outra forma, porquê este livro agora?
Eu tenho esse hábito de guardar os papéis todos, da Bósnia uns anos antes, do Kosovo, da Palestina. Surgiu agora o livro porque estava de férias a 15 de agosto, quando os talibãs tomaram o poder. Já andava a dormir relativamente pouco, o que quer dizer acordar sem sono às 4h da manhã. Não é uma boa altura para ir fazer exercício nem para ir para a praia. Por isso comecei a escrever.
Um pouco à imagem de Gonçalo M. Tavares...
Quando saí das duas semanas de férias tinha perto de 200 mil caracteres escritos. Um camarada que estava a passar férias comigo sugeriu falar com o editor Francisco Camacho. E foi assim que avançámos. Foi também aliar uma oportunidade relacionada com a gravidade do que aconteceu em agosto, a dimensão dos acontecimentos e a forma como se desenrolaram. E perceber que tinha não só muita bibliografia que comprei em 2001 e continuei a comprar depois, como temos muita informação disponível por todo o lado, e tinha as histórias que podia contar daquilo que vivi na altura.
Quem veja apenas a capa pode pensar que se trata de um livro só de História.
A minha ideia inicial foi pensar "isto é uma realidade demasiado complexa, eu não sou propriamente doutorado no Afeganistão, fiz isto baseado em muitas leituras, algumas que atualizei e outras pela primeira vez, mas valeria a pena pegar na minha experiência e tentar explicar isto às pessoas de uma forma simples". Daí acabou por surgir a ideia do A a Z, que é simples, mais intuitivo, ajuda a estruturar o pensamento, e pode servir de consulta no futuro.
Conta que numa reportagem um jovem guerrilheiro da Aliança do Norte tirou-lhe o microfone da mão e em resposta tirou-lhe a Kalashnikov. Um gesto corajoso...
...Mas imprudente.
Foi o momento mais tenso vivido no Afeganistão?
Diria que não. As noites que passámos em Jalalabad foram noites de muitos bombardeamentos e tiroteios nas ruas e numa noite em que tínhamos ido enviar uma reportagem para o local dos serviços de envios de televisão de satélite houve tiroteio forte e percebemos que nem podíamos voltar ao hotel. Tivemos de dormir no sofá da sala onde estávamos. Do ponto de vista mais emocional, de coisas que ficam gravadas na memória, destaco a visita a um hospital pediátrico em que tinham morrido alguns bebés nas incubadoras devido a uma falha de energia. Era um cenário com as mães em desespero, os médicos atarantados, pessoas revoltadas com a situação, pela falta de garantia de que as novas autoridades locais e a comunidade internacional não estavam a dar.
Entrevistou um homem que veio a ficar famoso, o livreiro de Cabul. Foi a história mais inspiradora?
Gostei muito de entrevistar uma mulher da RAWA, associação de mulheres revolucionárias do Afeganistão. Foi muito curioso porque foi poucos dias depois da libertação de Cabul e ela apareceu de burca. Necessariamente, uma das perguntas foi sobre se era uma opção. Ao que respondeu: "Vocês não percebem isto. Os tipos que puseram no poder, derrotando os talibãs, eram exatamente os mesmos que nos oprimiam antes dos talibãs. Para nós não muda nada. Eles, que destruíram o país antes dos talibãs, voltaram. Qual é o sentimento de libertação que podemos ter?" Isso deixou-me a pensar. Quando há um inimigo identificado tendemos a achar que todos os que se opõem são bravos guerrilheiros libertadores e supostamente democratas, o que está longe de ser verdade.
E muitos combatentes trocavam de lado.
E também isso, quando vamos para médias e baixas patentes, muito daquele conflito é feito por instinto de sobrevivência. Combate-se hoje pelos talibãs, mas se derem dinheiro troca-se de lado no dia seguinte e vice-versa. Os campos são muito voláteis porque também é um povo que não tem sossego pelo menos desde 1979, com a invasão soviética.
Com o Afeganistão há um antes e um depois em relação ao tratamento dos repórteres em cenário de guerra?
Tenho algumas dúvidas. Acho que é mais no Iraque, a partir de 2003 quando se começa a ter os jornalistas incorporados [a acompanhar os militares], o que muda muito a relação dos jornalistas com os teatros de operações a que estávamos normalmente habituados. O que não quer dizer que não tenha havido algumas experiências que poderíamos rotular de embedded, inclusivamente com jornalistas portugueses. Depois, os jornalistas e o pessoal humanitário, por parte das organizações terroristas ou paraestatais, ou de insurgentes ou o que queiram chamar, deixaram de ser vistos como agentes neutros, passámos a ser alvos como as tropas. O expoente disso foi o Daesh e a decapitação de jornalistas.
Citaçãocitacao"Muito do que tem acontecido àquele país é por responsabilidade do Paquistão, por aquilo que faz e por aquilo que não permite que se faça."
Os jornalistas fizeram um bom trabalho ao longo dos últimos 20 anos no Afeganistão?
Tentaram, mas é muito difícil conseguir contrariar uma tendência de informação muito dominante. A tendência de informação esteve muito ligada às informações que partiam dos responsáveis militares em Cabul para os decisores políticos e concretamente para a Casa Branca, para o Pentágono. Hoje em dia quando se ouvem os responsáveis norte-americanos falar nas comissões de inquérito, nas declarações que têm feito, têm dito "sim, sabíamos que era difícil", mas acabam por concluir que não disseram a verdade toda. Foram dizendo aquilo que entendiam que os seus chefes políticos queriam ouvir. E, sim, se calhar alguns decisores políticos foram enganados. Parecia muito claro para as pessoas mais ligadas ao tema, e eu fui falando ao longo dos anos com alguns analistas afegãos, gente que saiu do país e está em think-tanks, que o processo devia ter sido mais inclusivo desde o início. Não é fazer negociações com os talibãs em Doha quando se percebe que iriam tomar o país. Se tivessem sido chamados à discussão mais desde o início, dentro de determinadas balizas, quando não estavam na mó de cima, poder-se-ia ter conseguido transformar o país doutra forma. E não só para os talibãs, todo o mosaico étnico e religioso. E depois percebemos que, como ficaram à margem, continuaram a guerra de insurgência. Esta obrigou a manter uma pressão alta na dimensão securitária e, como se investiu muito nessa dimensão - há os contractors e as empresas que ganham os negócios que lhes interessa essa dimensão -, foram rios de dinheiro e negligenciou-se aquilo que podia ser a transformação do país no ponto de vista social, da educação, da saúde, das condições de vida, que poderia depois dar outra exigência aos cidadãos. Para muitos afegãos a chegada dos talibãs significou segurança.
A ideia de levar os talibãs para a mesa é partir do pressuposto que à época quereriam negociar.
Não sabemos, mas foram feitos poucos esforços nesse sentido, nomeadamente depois de 2010, 2011 podia ter-se investido nessa via. Estamos a falar de um país com uma corrupção endémica muito acentuada e tudo isso dificultou a transformação do país. Uma coisa é pensar que em três, quatro anos não se pode mudar um país. Outra coisa é investir-se toneladas de dinheiro em 20 anos.
Os norte-americanos, como refere no livro, têm estado a analisar o que falhou, e ainda não perceberam se foi por falta de estratégia ou demasiadas estratégias, como reconheceu o secretário da Defesa Lloyd Austin. Qual a sua opinião?
Acho que foi a estratégia errada, demasiado investimento na dimensão securitária e menos naquilo que poderia ter sido uma transformação estrutural na dimensão social do país.
De todos os erros dos EUA, a saída da base de Bagram foi o mais clamoroso?
Não consigo ter uma balança para pesar os erros, mas foi claramente um dos mais graves. Há outros. Quando fizemos a viagem de Jalalabad para Cabul num autocarro alugado, em dado momento ouço os dois motoristas e o tradutor falarem de Bin Laden. Perguntei sobre o que estavam a falar e os motoristas disseram que Bin Laden estava naquela zona. Perguntei como se chamava o sítio e tomei nota. Mas era conversa de motoristas... Estivemos semanas em Cabul, regressei a casa e passados uns meses há notícias sobre a suspeita de Bin Laden estar em determinado sítio. Fui ver os apontamentos: Tora Bora. Se os motoristas sabiam, os serviços secretos norte-americanos não sabiam, não tinham informadores nessa altura que lhes permitisse identificar que Bin Laden estava ali? Por que demoraram tantos anos até conseguirem liquidá-lo? Há várias perguntas para as quais provavelmente nunca vamos ter resposta, mas muita coisa podia ter sido diferente desde o início.
Russos, paquistaneses, sauditas e norte-americanos. Se houvesse uma lista de desestabilizadores do Afeganistão, quem ficaria no topo?
O Paquistão, incontestavelmente. Muito do que tem acontecido àquele país é por responsabilidade do Paquistão, por aquilo que faz e por aquilo que não permite que se faça quando é chamado a intervir, ou a ser parte da decisão. É o país que assume as posições pró-pastune e de alguma cumplicidade com os talibãs e não vou dizer claramente com a Al-Qaeda, mas sim com a cobertura que foi dando à presença de membros de organizações terroristas no leste do país.
O Afeganistão, apesar de continuar um país subdesenvolvido, é hoje uma sociedade diferente. Os talibãs terão apoio entre a população para subsistir? Ou sem investimento, por exemplo da China e do Qatar, acabarão por ruir?
Vamos ter momentos diferentes. Temos agora um momento de pré-colapso humanitário, em que há países que vão tendo relações minimamente cordiais com os talibãs por este ou aquele motivo, como a China. A parte do Afeganistão que faz fronteira com a China é Xinjiang. Sabendo aquilo que acontece com os uigures, não interessa à China ter um Afeganistão desestabilizado. E o ponto estratégico que o cruzamento de rotas significa. O Ocidente, perante a gravidade da situação humanitária, não tem outra alternativa senão ajudar. É preciso encontrar mecanismos para que isso possa ser feito. Já foi feito alguma coisa se não o sistema de saúde tinha ruído por completo. É preciso continuar a exigir garantias aos talibãs de respeito mínimo pelos direitos humanos e por aquilo a que se comprometeram e não estão a cumprir, diga-se de passagem. Depois, é preciso ver até que ponto, passado o rigor do inverno, a resistência não vai dar sinais de vida e se isso pode abalar o domínio dos talibãs. Se no vale do Panshir começar a haver avanços da resistência e fornecimento de armas pelo Ocidente temos um grande problema. Não acredito que vá sentir-se já nos próximos meses, mas é preciso ter em conta.
Sendo algo difícil de mensurar, como é que os afegãos se sentiam em novembro de 2001?
Havia esperança. As pessoas com quem falei e que saíram entretanto do país sentem uma grande desilusão.
cesar.avo@dn.pt
Breve História do Afeganistão de A a Z
Ricardo Alexandre
Oficina do Livro
350 páginas