Salve, leitor minoritário: o mais saudável 'sniper', atento ao ponto e à vírgula!

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Não é de experiência feito este saber - pudera!, ainda agora comecei -, mas de muitos anos a observar a interação dos leitores com os seus jornais, diretores e provedores: o leitor do mainstream, da corrente maioritária, quando se desagrada do que lê, escreve para o diretor, à espera que este "ponha ordem na coisa"; o leitor minoritário, esse, recorre ao provedor, não tanto à espera da reposição da verdade que julga assistir-lhe, mas de uma satisfação, intelectual ou moral, de ver reconhecidas ou, no mínimo, meditadas as suas razões.

Perdoem-me os mainstreamers, mas quero-me mais com os minoritários, porque mais atentos, mais eriçados, mais nervos à flor da pele, snipers de mira telescópica feita ao ponto, à vírgula, à entrelinha e, sobretudo, ao que não foi escrito ou dito. Nunca se contentam com nada e nunca se dão por vencidos. Têm esta coisa esquisita: não se resignam, almas do diabo. E vão e vão, andam e remoem, porque isto e aquilo, grilos falantes sempre a caturrar, a picar a comodidade, cafeína que entra pelos ouvidos. A verdade é que estes francoatiradores do rigor estão vivos e despertos. E fazem falta.

O leitor Carlos Amaral de Carvalho foi dos primeiros a recorrer à minha intervenção, logo no início de janeiro. Tinha havido, no dia 7 desse mês, uma manifestação muito significativa no País Basco a reclamar o regresso a locais próximos de cidadãos bascos presos espalhados por Espanha. O DN inseriu, na sua edição online, um despacho da agência Lusa, onde se referia que "as autoridades não forneceram dados, mas a organização da marcha estimou em 3000 o número de participantes". "Ora, isto é falso", garante o leitor. "A organização estimou o número de participantes em 110 mil. A marcha foi tão significativa que a maioria dos meios de comunicação reconheceu o extraordinário sucesso da convocatória. O diário espanhol Publico noticiava mais de 100 mil nas ruas de Bilbau, por exemplo."

Interpeladas, as editoras da área, Helena Tecedeiro e Patrícia Viegas, explicaram que "o texto da notícia que aparece no site é assinado com a referência 'Lusa'. Quanto ao número de manifestantes, o DN, não tendo possibilidade de ter jornalistas nesses locais para confirmarem por si próprios os factos, optou por confiar nos critérios noticiosos da agência cujo serviço assina e que reputa, naturalmente, como fonte de informação credível". Acontece que o leitor já estava preparado para essa justificação e adiantou-se: "Se é certo que o artigo não é da autoria de qualquer jornalista do DN, a sua publicação não exige menor responsabilidade pelo conteúdo que se comunica. E é extraordinário que o DN tenha publicado uma notícia que transmite uma mentira enorme."

Na verdade, foi excesso de confiança do DN. A notícia da Lusa contradizia, de facto, tudo o que as outras referiam, nomeadamente que a estimativa era de 110 mil manifestantes. Entre 110 mil e três mil, a diferença é enorme. E se a editoria do DN tivesse visto, nem que fosse de relance, uma das fotos da manifestação (uma longa avenida cheira de manifestantes) continuaria sem saber quantos estavam, mas ganhava uma certeza: nenhuma organização avaliaria essa SUA manifestação em três mil pessoas. A Lusa prestou um mau serviço aos seus clientes, mas o DN serviu mal os seus leitores - e é isto que conta para o brio de um jornalista do DN.

Mas o leitor Carlos Amaral de Carvalho não se ficou por aqui. Dias depois desta notícia, relatava-se a morte, na Síria, de um jornalista francês. Como morreu? Quem matou Gilles Jacquier?

Protesta o leitor: "O DN lança no lead a escandalosa mentira de que 'Um ataque de morteiros das forças governamentais na cidade que é um dos símbolos da resistência ao regime de Assad matou um jornalista francês e seis sírios'. Já no interior deparamo-nos com a seguinte informação: 'Jacquier realizava uma reportagem naquele que é um dos centros da resistência ao regime de Bachar al-Assad, quando forças fiéis a Damasco lançaram uma barreira de morteiros sobre um ponto onde confluem os bairros de Akrama e de Al-Nouzha'."

Acontece que Jacquier integrava um grupo de jornalistas que estavam na Síria a convite das (ainda) autoridades do país e cobria uma manifestação de jovens a favor de Assad e encontrava-se sob a proteção das forças de segurança sírias. Altamente improvável, portanto, que tivesse sido alvo de um obus dos pró-Assad.

As editoras explicaram que a versão online refletia despachos da agência France Presse, que deram como credível, mas que, assim que souberam da verdade dos factos, a notícia surgiu correta, nos dois dias seguintes, na edição em papel do DN. Confirmei-o. Por lapso, explicaram as editoras, a correção/atualização não foi feita na edição online.

Menos mal, neste caso. Foi pena que o erro não tivesse sido corrigido na edição online. Mais do que pena, foi errado - e pouco avisado. A ausência de retificação não passou despercebida, exatamente porque um leitor de pé atrás nesta matéria tão sensível estava de lupa crítica. A morte de Gilles Jacquier ocorreu em circunstâncias que deixam desconfortável o mainstream que divide a Síria em bons e maus (tal como o País Basco). Afinal, o lado dos "bons" também tem os seus defeitos - que a história nos indica que só se descobrem quando os bons de uma circunstância passam a "eixo do mal" de conjuntura diferente. Por causa disso é que, de quando em quando, assomam uns minoritários, reclamando razão: "Eu não vos disse?"

O melhor, portanto, é servir bem. Com muito rigor e escrúpulo. E os mainstreamers e minoritários que façam os juízos que entenderem. Mas que os dois lados estejam gratos a esta força de interposição de paz que é o jornalismo.

Nota final: adorei fazer este título! Vai contra todas as regras e livros de estilo (que sempre entendi como um convite à transgressão criativa): vírgulas, dois pontos, exclamações, estrangeirismos, ausência de verbo em forma ativa - todos os ingredientes, enfim, para um editor o mandar para a cesta secção. Dedico-o, por isso mesmo, ao meu mais querido chefe de redação de sempre, Fernando Pires, pilar desta casa, que há de, ainda hoje, começar por arrancar os seus penúltimos cabelos de exasperação e, depois, coração grande e paternal, cair em si, sorrir para dentro - e condescender. Gaita, que saudades de fazer jornal!

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