Salazar, mito e saudade

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A terrível osmose entre Oliveira Salazar e a "alma nacional" é a questão mais perturbadora do século XX português. É um dado historicamente adquirido que o ditador foi bem sucedido até ao fim, afrontado apenas por uma oposição residual (o Partido Comunista e meia dúzia de companheiros de estrada). Quando, lá nos finais de 60, Salazar começou a dessincronizar-se com o país que foi transformando à sua imagem e semelhança, a natureza tratou do assunto: caiu da cadeira, ficou incapacitado, tempo depois morreu e não assistiu à derrota.

Tão perturbador como o sucesso político que, no seu tempo, o ditador conseguiu, é o mito que se deixou propagar e que, aqui e ali, regressa como uma maldição fantasmagórica. Afinal, o homem desapareceu da actividade pública em 1968 (independentemente de, já doente, ainda se julgar presidente do Conselho e de os ministros terem alinhado na farsa); foi derrotado, embora só depois de morto, pelo golpe de Estado de 25 de Abril de 1974; e finalmente enterrado com a adesão à então Comunidade Económica Europeia.

Antes de a RTP ter feito de António de Oliveira Salazar o maior português de sempre - não vale a pena minimizar aqui a importância da amostra e o carácter lúdico do concurso - o recorrente saudosismo salazarista sempre teve o seu lugar no rectângulo. Basta andar de táxi em Lisboa: de vez em quando lá aparece, com a regularidade com que os dias se sucedem às noites, o taxista que nos informa que "o que faz falta é um Salazar". Nem há 15 dias voltei a ter a aparição de mais um taxista do Salazar: o homem tinha menos de 50 anos e, porém, muitas saudades.

E porque persiste o mito se (para nosso bem) o Portugal de hoje pouco tem a ver com aquele idealizado pelo ditador rural? Talvez numa minudência que já era do conhecimento dos persas antes de Cristo: mais importante que o poder, é a aura que lhe está associada. A propaganda associou ao homem virtudes que, décadas depois, continuam a ser vistas como decisivas no exercício do poder: o autoritarismo e a solidão, por exemplo. Já não falo de Cavaco, mas até Sócrates, um rapaz moderno, foi beber lá o seu quinhão.

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