Salário mínimo europeu?

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Um dos temas mais debatidos durante a campanha que antecedeu as últimas legislativas foi a política salarial. Em regra, esta temática, nas bocas dos nossos políticos, esgota-se no salário mínimo. Não foi o que aconteceu desta vez, sobrando espaço para se discutir o salário médio. Nem podia ser de outra maneira: se o salário mínimo subiu muito entre 2014 e 2022 (cerca de 45%), a remuneração-base média tem subido pouco (aumentou apenas 11%), o que vem gerando uma profunda distorção no mercado de trabalho e uma enorme sensação de injustiça para todos os que estão na média ou pouco abaixo dela.

As razões do aumento do salário mínimo são simples: decorrem de uma imposição legislativa inescapável para os agentes económicos. Já o salário médio, porque não pode ser aumentado por decreto, depende das condições económicas, da força da negociação coletiva e da vontade dos empregadores.

É possível que, além das promessas do PS até ao fim desta legislatura, o tema dos salários tenha vindo para ficar durante mais algum tempo. Isto porque, em 2020, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de diretiva relativa a salários mínimos adequados na União Europeia. Muitos daqueles que vão vendo as declarações das instituições europeias como pouco mais do que meras proclamações platónicas (na medida em que já existem, na UE, disposições que garantem a todos os cidadãos o direito fundamental a uma remuneração digna), teriam achado que esta proposta estava condenada (ou engavetada) à partida, só para depois ficarem surpreendidos por, em dezembro último, os Estados membros terem aprovado um mandato negocial com o Parlamento Europeu, tendo em vista a adoção desta legislação.

Quer isto dizer que vamos ter um salário mínimo europeu (SME) igual em todos os países? Não. Isso está fora de questão, até porque os tratados da UE expressamente determinam que a fixação dos salários mínimos é da competência nacional. De outro modo, a existência de um salário mínimo europeu, embora lógico num mercado interno, contraria a tradição de pelo menos seis países que não têm salários mínimos nacionais (SMN) de base legal, mas antes resultando da contratação coletiva.

Na verdade, esta nova diretiva é um clássico caso de muita parra para pouca uva. Apesar de a designação poder enganar, não se quer nenhum SME nem sequer fixar a nível europeu os SMN. Antes, propõe-se um quadro estritamente processual comum a todos os países. De acordo com esse quadro, todos têm de estabelecer critérios estáveis e claros de fixação e atualização dos salários mínimos, critérios esses que garantam boas condições de trabalho e vidas dignas. No mínimo, os Estados têm de ter em conta o poder de compra dos salários mínimos nacionais, o custo de vida, os impostos e as prestações sociais, o nível e a distribuição dos salários brutos.

Há, porém, um aspeto importante: a Comissão fez as contas e percebeu que, em países onde a negociação coletiva é mais forte, os níveis gerais das retribuições, incluindo as mínimas, são mais elevadas. E, por isso, quer obrigar os Estados a promover a contratação coletiva e a participação dos parceiros sociais na fixação dos SMN. Com isto talvez se altere definitivamente o modelo que tem sido seguido nos últimos anos em Portugal, o qual menoriza o papel da concertação social em detrimento da imposição acrítica do SMN por parte do governo. A experiência europeia mostra que a subida dos salários - mínimos e médios - depende muito mais da negociação entre sindicatos, empregadores e governos do que de decretos-leis seguidos de medidas de compensação para as empresas.

Um dos aspetos interessantes desta proposta de diretiva é um dos critérios obrigatórios para a definição e a revisão dos SMN ser a evolução da produtividade do trabalho, o que prejudicará países como Portugal em favor das economias mais avançadas. Depois, continua a ser possível prever salários abaixo dos SMN para certos grupos, o que nos merece as maiores reservas. Finalmente, esta diretiva aplicar-se-á a todos os trabalhadores que assim se possam qualificar por força do Direito da União, o que poderá abranger, no limite, os trabalhadores domésticos, ocasionais, intermitentes, os falsos recibos verdes e os trabalhadores das plataformas digitais.

Se esta diretiva triunfar, teremos mais liberalismo, mais mercado, mais contratação coletiva e menos intervencionismo estatal. Mas com o nosso otimismo cético, continuaremos fiéis à máxima de São Tomé: ver para crer.

Advogado especialista em direito do trabalho

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