Acusado de 90 crimes, Rui Pinto vai ficar a saber se os argumentos do advogado Francisco Teixeira da Mota foram suficientes para não ser condenado a prisão efetiva. Ao mesmo tempo talvez surja a resposta para a questão que se levantou praticamente desde que foi detido em 2019: ao divulgar documentos a que acedeu após entrar em e-mails de forma ilegal tornou-se apenas um hacker a cometer um crime ou um denunciante a divulgar práticas que, por exemplo, prejudicaram autoridades tributárias?.Até 2019 era um português anónimo que nasceu em Gaia (a 20 de outubro de 1988) e vivia na Hungria, onde estudou e ficou a residir a partir de 2015. Nesse ano criou o site Football Leaks com o objetivo de "divulgar a parte oculta do futebol", como escreveu. A sua identidade como autor das várias fugas de informação que se foram sucedendo -- uma das primeiras foi o contrato do treinador Jorge Jesus com o Sporting -- foi conhecida em 2019. Confirmou que usava o pseudónimo "John" para assumir a publicação dos documentos que foi retirando de vários servidores a que acedeu de forma ilegal..Há inúmeras personalidades e entidades que foram alvo de publicações no Football Leaks. Cristiano Ronaldo, o empresário Jorge Mendes, o Sporting, o Benfica, a empresária angolana Isabel dos Santos, o escritório de advogados PLMJ, a Doyen, a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Real Madrid, o Manchester United, o FC Porto ou o Inter de Milão são alguns exemplos..Para hoje está marcada a leitura da sentença relacionada com o processo em que é acusado de três crimes de acesso ilegítimo (aos computadores do Sporting, PLMJ e Federação Portuguesa de Futebol) e quatro de acesso indevido (Sporting, FPF, PLMJ e PGR), entre os 90 de que Rui Pinto está acusado..Rui Pinto foi a julgamento acusado pelo Ministério Público de 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo, visando entidades como o Sporting, a Doyen [a quem terá pedido meio milhão de euros para não divulgar documentos e em que também esteve envolvido o advogado Aníbal Pinto], a sociedade de advogados PLMJ, a FPF e a PGR, e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por extorsão, na forma tentada. Este último crime diz respeito à Doyen e foi o que levou também à pronúncia do advogado Aníbal Pinto..Nas alegações finais, a procuradora Marta Viegas pediu a condenação de Rui Pinto por 89 dos 90 crimes de que está acusado. O único que considerou não ter sido provado no julgamento que se iniciou a 4 de setembro de 2020 foi o de sabotagem informática à Sociedade Anónima Desportiva (SAD) para o Futebol do Sporting..Francisco Teixeira da Mota pediu que o seu cliente fosse condenado a uma pena suspensa. Nas argumentações finais, o advogado disse que "não fazia sentido" pedir a absolvição e considerava que "uma pena de prisão suspensa será suficiente". Nas suas declarações lembrou que é a primeira vez que Rui Pinto está a ser julgado. Sublinhou também que o arguido "é uma pessoa que inequivocamente estava absolutamente motivada para denunciar e tornar público crimes, situações graves e ilegalidades". Garantiu ainda que Rui Pinto "continua com a sua ambição na luta pela transparência no futebol"..Frise-se que uma eventual pena suspensa só poderá ser aplicada caso a decisão do tribunal seja a de aplicar uma pena até cinco anos..Rui Pinto foi detido em Budapeste (Hungria) a 16 de janeiro de 2019. A 22 de março desse ano foi entregue às autoridades portuguesas e quando chegou ao país foi-lhe decretada a prisão preventiva, tendo ficado no estabelecimento prisional anexo ao edifício da Polícia Judiciária, em Lisboa, na cela 42. A 8 de abril de 2020 a medida de coação foi alterada, passando para prisão domiciliária depois de ter aceitado revelar as palavras-chave dos discos rígidos que a investigação considerava essenciais. Durante o período em que esteve nesta situação foi colocado numa casa sob alçada da PJ. A 7 de agosto desse ano saiu em liberdade..As revelações que foi fazendo ficaram divididas em três casos: Football Leaks, Luanda Leaks e Malta Leaks. No julgamento, o advogado Teixeira da Mota frisou que o seu cliente tinha sido transformado "no perigoso inimigo número 1", mas que apesar de estar implicado naqueles processos não era "a pessoa mais vil da História, é uma pessoa com qualidades e defeitos"..Sim. Falou em "arrependimento". "Foi dado a entender pelo Ministério Público e advogados que não demonstrei um arrependimento sincero. Estão equivocados se consideram que não existe um arrependimento sincero da minha parte. Tenho a minha vida de pernas para o ar. Não chego ao ponto de dizer que tenho a vida destruída, mas tenho a plena noção que tive comportamentos errados que violam a lei. Nada justifica violar a caixa de advogados - todos os advogados têm direito ao segredo profissional", disse, citado pela revista Sábado..Após a sua detenção iniciou-se um debate sobre o estatuto deste arguido. Para os queixosos Rui Pinto é considerado um hacker que acedeu de forma ilegítima a computadores, contas de e-mail e divulgou os documentos a que teve acesso. Por isso deve ser punido..Mas nem todos pensam assim. Os seus advogados -- além de Francisco Teixeira da Mota foi representado nos processos internacionais por William Bourdon, que representou, por exemplo, Antoine Deltour e Edward Snowden -- apresentaram como argumentação de defesa que Rui Pinto devia ser considerado um whistleblower (ou denunciante). Tese em que foram acompanhados pela antigo eurodeputada do PS Ana Gomes, que chegou a visitá-lo quando esteve detido. No julgamento disse ter uma "impressão positiva" de Rui Pinto em termos pessoais e que este foi ganhando consciência da importância das publicações que fazia, principalmente depois de ter estado em contacto com jornalistas da Der Spiegel [revista semanal alemã]..Os contactos entre Rui Pinto e alguns jornalistas iniciaram-se em outubro de 2015, como contam Rafael Buschmann e Michael Wulzinger, os jornalistas da Der Spiegel que se encontraram com o português. A história destes contactos é contada no livro Football Leaks (da editora Planeta) e onde é explicado, por exemplo, que Rui Pinto tinha fornecido a estes profissionais e ao consórcio European Investigative Collaborations [do qual faz parte o semanário português Expresso] 1,9 terabytes de informação, ou seja 18,6 milhões de documentos..Não. Como contam os jornalistas, no livro acima referido, o português começou por ser identificado como "FL" e depois passou a ser o "John"..Nas 300 páginas os autores descrevem a forma como jogadores e empresários recorriam, de acordo com as informações entregues por Rui Pinto, a empresas offshore para movimentar verbas que assim escapavam ao controlo das autoridades financeiras dos vários países onde os atletas jogavam..Sim. Segundo notícias divulgadas logo em 2019, mais de dez países [incluindo representantes portugueses] estiveram reunidos em Haia, na sede do Eurojust, para trocar informações. Na altura soube-se que as autoridades judiciais francesas já tinham tido acesso e analisado 12 milhões de ficheiros informáticos relacionados como o processo Football Leaks..Em abril de 2019, a eurodeputada Ana Gomes publicou na rede social Twitter uma imagem da entrega a Rui Pinto, que estava detido na Polícia Judiciária, de um prémio atribuído pela Esquerda Unitária Europeia (GUE/NGL) no Parlamento Europeu, pelo seu papel como whistleblower (denunciante). A decisão tinha sido anunciada a 16 de abril em Estrasburgo (França)..Existe desde 20 de dezembro de 2021. Nesse dia foi publicado em Diário da República a Lei n.º 93/2021 que "estabelece o regime geral de proteção de denunciantes de infrações, transpondo a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União". A partir daqui as entidades do setor público e privado com mais de 50 trabalhadores passaram a ter de disponibilizar canais de denúncias internos. E ficou proibido qualquer ato de retaliação contra o denunciante..Para o autor do mais recente livro sobre o tema -- Nuno Tiago Pinto, diretor da revista semanal Sábado -- esta questão é a que "torna este caso fascinante". No livro Rui Pinto: o hacker que abalou o mundo do futebol está descrita uma parte da investigação que a revista publicou em setembro de 2018 e em que se divulgou o nome do jovem que esta sexta-feira saberá, em princípio, a sentença para o processo em que está envolvido. E talvez se fique a saber a resposta: Denunciante ou hacker? Herói ou vilão?.cferro@dn.pt