Rogério Carapuça: O aprendiz de pianista que estreou os computadores em Portugal

Brunch com o presidente da APDC, Rogério Carapuça.
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É um homem tranquilo, de palavras calmas e postura de quem já fez muitas revoluções na vida profissional, que se senta à minha frente. As postura reta que o transporta pelas disrupções que liderou num percurso marcado por tecnologias sempre à frente do seu tempo, que foi testando, com as quais conviveu e que aplicou muito antes de o resto do país ter sequer delas conhecimento, descontrai-se ao falar das outras aventuras em que embarca, a preencher a necessidade pessoal de se superar a cada momento, de testar os próprios limites e não deixar nada por fazer. O sorriso passa-lhe dos olhos à boca quando conta, por exemplo, que começou há uns meses a aprender a tocar piano, um sonho antigo que agora materializa em obras impossíveis, como o tema mais conhecido de Lala Land, adaptado pelo professor de música para que um leigo que se estreia nas teclas e pedais consiga cumpri-lo, mas nem por isso menos desafiante para quem se lança nestas lides.

Encontramo-nos no café do MAAT café & Kitchen, a ver o rio pela frincha abaixo da pala, uma luz linda a enquadrar a costa a sul de Lisboa. Já terminou o congresso que teve 7 mil pessoas a assistir, duas vezes e meia a audiência normal, graças ao formato híbrido que permitiu não apenas receber pessoas em sala no Auditório da Faculdade de Medicina Dentária de Lisboa como que muitas mais assistissem ou a participassem online a partir de qualquer ponto do mundo ao retrato do que aí vem, sob o tema The Way Forward. E Rogério Carapuça é a imagem de um homem feliz, realizado. Está na APDC desde 2013 e tem protagonizado a transformação da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Tecnologias. Mas nem por isso considera que o seu trabalho está feito, antes o reinventa, se reinventa e se empurra para novas fronteiras.

Pedimos croissants com fiambre e queijo, café, água e vamos-lhe correndo a vida que o levou à corrente aventura. Conta-me dos tempos em que estava na Novabase como chairman e a APDC, então liderada por Pedro Norton, precisou de o substituir, levando os associados a abordá-lo. Queriam que os liderasse agora alguém do lado das TIC - os antecessores vinham das telecom ou media. E correu tão bem que vai já no quarto mandato e liderou duas transformações num setor altamente diversificado, fruto do alargamento da APDC, que se expandiu para fora das TIC, para empresas fornecedoras e também os próprios operadores, representantes de todo o mercado, de todas as áreas, para que os interesses plenos estivessem representados. Foi essa a sua primeira marca ao leme, que permitiu levar a transformação digital a todos os setores, mantendo as atividades regulares - congresso, jantares-debate, publicações, etc. -, acrescentando detalhes e abertura fora das TIC.

A segunda transformação da sua era na APDC veio com a pandemia. Fechados os eventos pela covid, havia que decidir o que fazer, já que os eventos eram a principal atividade. Tiveram a sorte de ter Rogério à frente, com a capacidade de prever logo que a pandemia e as restrições consequentes não durariam menos de quatro anos - "A Medicina é hoje mais sofisticada do que na gripe espanhola, mas há muito maior circulação de pessoas", justifica, dizendo ter sido a fraca gestão de expectativas na sociedade que provocou mais cansaço nas pessoas, que esperavam um confinamento de três meses seguido de normalidade.

Rogério percebeu logo que havia que transformar tudo: todo o trabalho tinha de ser remoto, os eventos virtuais, os meios escritos tornados exclusivamente digitais e o congresso, a joia da coroa da APDC, feito programa de televisão com toda a qualidade de um canal regular, em parceria com a RTP e transmitido em antena.

Mas havia mais a fazer, algo a dar à sociedade, cujas necessidades de se reinventar eram - e são - absolutas e urgentes. Razão pela qual o presidente da APDC se pôs a pensar como poderia ajudar, acabando por encontrar a solução no Upskill. "Trata-se de um programa de reskilling que desenhámos para responder a essas necessidades de converter muita da massa laborar e apresentámos a proposta ao governo, em parceria com entidades públicas, para ajudar a transformar as pessoas", explica. O desenho já todo feito em pandemia - os contratos com IEFP e associação dos politécnicos foi assinado em março de 2020 - e todo o trabalho andou já em confinamento, com aulas presenciais e remotas. O modelo, articulado pela associação, permitia não apenas construir saídas para desempregados, como para quem quisesse mudar de vida: são as próprias empresas que se responsabilizam por dizer que perfil de profissionais precisam e comprometem-se a contratar 80% dos formados, com um salário de entrada de 1200 euros/mês. Mas mesmo durante a formação de seis meses os candidatos em formação recebem o salário mínimo, bem como nos três meses de estágio que se seguem antes de assinarem contrato.

"Isto permite também criar uma responsabilização de todas as partes: o IEFP ajuda com as entrevistas, publicita os programas entre desempregados e financia aqueles meses; os politécnicos e o ISCTE, que se juntou, garantem a oferta formativa e os formados até podem escolher se tiverem mais do que uma hipótese de contrato. Não há outro programa parecido", diz Rogério, justamente orgulhoso de um modelo que permitiu formar 400 pessoas logo na primeira edição e se prepara para arrancar com o dobro. A resposta foi tão boa que "começa a haver agora dificuldade em encontrar pessoas para os pedidos das empresas. Porque nós temos a geração mais qualificada de sempre, mas também a mais pequena. Quando eu me formei, eram 8% os que seguiam até à faculdade; hoje são 38%, mas nos últimos anos perdemos, entre a demografia e a emigração, meio milhão de jovens", concretiza, acrescentando o desajustamento geográfico à equação: "Onde há necessidades, nem sempre há pessoas disponíveis em número suficiente".

Diz que já vai na sua terceira vida, tendo a primeira sido de professor universitário, tarefa a que se dedicou durante 13 anos, fez mestrado e doutoramento e gostava dessa vida, do contacto com "a rapaziada mais nova, do que se aprende ao ter de se ensinar". A Novabase resultou disso: "Um dos fundadores foi meu colega de mestrado no INESC TEC - tínhamos uma incubadora lá e dela nasceu a empresa. Eu fui gerente e representava a incubadora do INESC TEC, a AITEC, na Novabase, ao lado dos fundadores." Quando começou a licenciatura de Informática no Técnico, regressou, pelo arranque dos anos 1990, e em 1994 pediram que regressasse à empresa, primeiro como representante da AITEC, depois já em full time. "A minha prática era com clientes, quis experimentar tê-los nesta lógica empresarial, por isso fui", conta. A intensidade do trabalho obrigou-o então a largar as aulas e lá mudou de vida.

Na Novabase fez caminho até CEO, fez a entrada em bolsa - "foi a minha introdução ao nível da finança, foi entusiasmante", recorda. "Tinha de falar com outros interlocutores, o que se faz com os clientes não tem nada que ver com falar com investidores, é um exercício de modéstia ter de explicar por que vale a pena investir a representantes que por vezes são miúdos", diz. "E tinha de perceber como se faz, a linguagem e também o interesse são totalmente distintos", descreve.

Também o facto de o negócio passar a ser regulado trazia novas exigências que obrigaram a uma aprendizagem maior. A Novabase fazia sistemas, não era uma dotcom, mas a confusão era fácil... mas quando rebentou a bolha já estavam a salvo. "Tivemos o timing perfeito, durante muitos anos a seguir não houve IPO na bolsa portuguesa. E outras empresas que se atrasaram uma ou duas semanas já não conseguiram." Essa foi a segunda etapa da sua vida, antes de dar início à fase da APDC, mantendo-se ainda na Novabase até 2018.

As tecnologias, como lhe chegaram à vida, quero saber, sem desconfiar que me levará numa viagem pelo tempo que parece tirada de um filme. "Em 1979, dois anos antes de me formar no Técnico, tive um professor que era o José Manuel Fonseca de Moura (que hoje está na Carnegie Mellon) e tinha um programa de cooperação entre aquela universidade americana e o Técnico, que quis trazer um computador para o nosso centro. Era um armário... mas já tinha uma coisa fantástica, uns terminais vídeo. Eu quando aprendi a programar era ainda com teletypes, era uma espécie de impressora, nós escrevíamos e saía uma fita perfurada com o programa, só depois vieram os cartões perfurados, que juntávamos numa caixa de sapatos - o Técnico tinha uma máquina IBM e uma perfuradora - e o programa era a sequência dos cartões. Púnhamos aquilo numa janelinha, levavam para instalar e depois vinha a listagem e dizia "erro na linha 25". Dois ou três dias depois de verificações lá mandávamos de novo."

Eram programas que simulavam, por exemplo, feixes hertzianos, nada que tivesse grande relação com a sua formação em Engenharia Eletrotécnica, mas que lhe havia de ditar o futuro, muito à boleia dos empurrões dados pelo professor Fonseca de Moura, que o levou a experimentar o computador e a aprender para depois "ensinar a malta". Uns meses depois, Rogério era destacado para informatizar uma fabrica de Setúbal, delegação do entreposto em que se montavam arcas e frigoríficos, onde aprendeu também que, por muito que se diga, aparte o design, não há grandes diferenças nessas máquinas. A tese de mestrado seria baseada em reflexões sobre esse projeto e, como lhe faltava informação teórica, o professor providenciou-lhe uma bolsa da NATO para ir estagiar à Universidade de Maryland, ao lado de especialistas em construção de bases de dados. "Foi uma espécie de Erasmus numa época em que isso não existia."

Entrar em tão complexas experiências num tempo em que os computadores eram aves raríssimas não seria porém fácil, não fosse Rogério ter no ADN já alguma programação, herança do pai, telegrafista da Marconi, que passava os dias a transmitir código de Morse e a ouvir a transmissão do outro lado, a passar para texto escrito. Ele visitava-o por vezes, interessou-se, e o pai convenceu-o a fazer um curso por correspondência de eletrónica. "Estava no quinto ano e aquilo eram dois anos, mandavam as peças por correio, os materiais para soldar... O rádio que montei nessa altura dei-o à minha filha", conta. Daí à Engenharia foi um salto, desta aos computadores, outro, também digno de nota.

O 25 de Abril deu-se com Rogério a terminar o 10.º ano, o seguinte foi um caos e nessa altura havia um ano de paragem obrigatória antes da faculdade. "Era o ano para alfabetização, em que era suposto andarmos pelo país a alfabetizar o povo", conta-me. "Eu fui mandado para uma aldeia perto de Sintra e mal cheguei, no primeiro dia, o senhor que me recebeu disse que não precisava de mim, que podia ir embora e diriam que eu lá tinha estado a cumprir serviço. Fiquei sem nada que fazer, mas também não podia ir para a faculdade". "Era uma altura em que toda a gente tinha causas. Então juntei-me a outros na mesma situação e fizemos a Luta dos Candidatos ao Ensino Superior", ri-se, a recordar como conseguiram convencer os responsáveis da Faculdade de Ciências a deixá-los assistir às aulas, mesmo sem estarem inscritos. Alguns professores até os deixaram fazer os exames e quando arrancou a sério já levavam trabalho adiantado.

Cumpridos os primeiros dois anos ali, passou então para o Técnico, onde viria a conhecer a mãe da filha, Luísa, hoje com 31 anos, no tal centro de investigação para o qual fora puxado e onde começou a familiarizar-se com os computadores. Estava já casado e a trabalhar quando o chamaram para a tropa. "Tinha pedido adiamento para fazer o curso, depois o doutoramento e achei que se tinham esquecido de mim quando, aos 31 anos, recebi a carta a chamar-me ao serviço militar. E lá fui fazer a recruta para o destacamento de Tavira - era o terceiro mais velho da companhia, depois do comandante e do segundo comandante." Foi pouco tempo, mas garante que útil para entender a cultura e aprender coisas relevantes como a pontualidade, o respeito pela hierarquia, o espírito de corpo.

Casado hoje com a prima de uns amigos que conheceu em férias, já divorciado - um dos poucos elementos da sua vida que não tem relação com a tecnologia, já que a mulher é advogada -, já temos mais de uma hora de conversa no papo quando lhe pergunto o que faz para se divertir. "Faço consultoria para algumas empresas, invisto em startups..." depois ri-se e justifica: "Só trabalho com quem gosto, tenho hoje essa máxima, por isso estas coisas divertem-me; por isso aceitei ficar mais um tempo na APDC." Também gosta de viajar, mas a covid tem-lhe cortado a possibilidade de aventura, que agora quer concretizar finalmente, uma temporada no Canadá e no Alasca.

Tendo mais tempo, há de voltar a pegar no comboio elétrico que montou numa sala na sua casa do Alentejo, com estações, cidades, pontes e pessoas à escala. Mas admite que essa paixão é mais gostosa na fase de construir do que na de usufruir. Também já se meteu pelo mar - teve um barco a motor e tirou a carta de patrão local e de costa - "diverti-me imenso, mas é preciso prática. Aquilo que se aprende nas cartas não é a conduzir, é o código: se não se ganha prática, parte-se uma marina toda, que aquilo não tem travões", ri-se.

De resto, há muitas aventuras que gostaria ainda de experimentar, mas para algumas, diz, já não tem idade ou estrutura - caso da equitação, uma paixão que a hérnia discal deixará por concretizar. Mas nada que o afaste do piano, que anda a aprender com um professor há pouco mais de um ano. "Há imensas coisas que gostaria de ter feito e uma delas era tocar um instrumento. Mas isto hoje leva mais tempo do que quando se é mais novo... conseguir coordenar cada mão, os pés, ler a pauta." Construiu o seu método para facilitar as coisas, decorando a música em vez de aprender a lê-la e é assim que está a praticar o tal Me and Sebastian Theme, de Lala Land. A dificuldade da tarefa nunca impediu Rogério de chegar onde decide. E continuará a não ser obstáculo a todas as missões em que promete embarcar.

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