Como se esperava, o líder húngaro foi o protagonista do Conselho Europeu. Num primeiro momento, Viktor Orbán recorreu à abstenção para não ser um entrave à decisão dos restantes 26 líderes europeus em abrir negociações com a Ucrânia e a Moldávia para a futura integração destes países na UE, mas horas depois vetou o quadro financeiro plurianual e a reserva financeira destinada a Kiev..Há anos em choque com os valores democráticos e do Estado de direito, o governo da Hungria tem sido condenado pelos tribunais europeus e em consequência ficou sem acesso a fundos europeus como o PRR. A unanimidade requerida para a tomada destas decisões proporcionou a Orbán a arma de que precisava para obter concessões de Bruxelas. O alargamento europeu exige reformas internas e o fim do veto é uma das medidas contempladas na revisão dos tratados, tal como aprovado há três semanas no Parlamento Europeu, mas o Conselho Europeu que terminou esta sexta-feira não teve em conta a iniciativa dos eurodeputados..Contas feitas, Viktor Orbán fez uma pequena operação de charme, foi premiado com o desbloqueio de fundos e mantém o poder negocial. No final, regozijou-se com o resultado e até revelou que os outros líderes terão confidenciado que o húngaro nada teria a perder, uma vez que no futuro poderá continuar a torpedear as pretensões ucranianas. "Se for necessário travaremos o processo", afirmou..O consenso a 27 - e no futuro com mais países - torna-se cada vez mais uma miragem. A unanimidade deixou há muito de ser a regra, e em especial o Tratado de Lisboa veio permitir a decisão por maioria qualificada em várias áreas, além de introduzir a chamada cláusula-ponte, que possibilita a exceção da unanimidade em algumas pastas. No entanto, é necessário consenso em temas considerados sensíveis, caso da adesão de novos Estados-membros, fiscalidade, segurança social, política externa e de segurança comum, e a cooperação policial..O processo de reforma começou em 2021, com o lançamento da Conferência sobre o futuro da Europa, cujo relatório final acolheu dezenas de propostas entre milhares recolhidas em painéis numa plataforma dedicada. Depois de, em junho do ano passado, o Parlamento Europeu ter aprovado uma resolução a pedir ao Conselho que convoque uma convenção - o formato para alterar os tratados - um grupo de deputados da Comissão dos Assuntos Constitucionais decidiu avançar com um relatório para a revisão dos tratados. O mesmo foi aprovado em outubro, com 19 votos favoráveis e seis contra..O social-democrata Paulo Rangel fez parte do grupo que reprovou o relatório na sua versão inicial, mas acabou por votar de forma favorável depois de emendado no hemiciclo, cerca de um mês depois, em 22 de novembro. O vice-presidente do Partido Popular Europeu lamenta que o processo tenha sido conduzido por "voluntaristas que querem transformar a UE num superestado europeu"..O relatório, saído da pena do belga Guy Verhofstadt e de quatro alemães, tinha "coisas más", como a mudança da unanimidade para maioria qualificada de 50% mais um, o fim da unanimidade em política fiscal, ou a redução do número de comissários sem assegurar o princípio da rotatividade - e em consequência não assegurando a presença de dirigentes dos pequenos e médios países no executivo europeu..O texto final acabou por sofrer bastantes alterações. O relatório exige mais competências comuns a nível ambiental, e competências partilhadas na saúde pública, proteção civil, indústria e educação, domínios agora da competência exclusiva dos Estados-membros. Os deputados defendem que as competências partilhadas devem continuar nos setores da energia, assuntos externos, segurança externa e defesa, política de fronteiras externas e das infraestruturas transfronteiriças..O relatório foi aprovado por um hemiciclo muito dividido: 305 a favor e 276 contra, e a resolução que o acompanha ainda teve menos adesão. Os eurodeputados instaram os líderes da UE a convocar a referida convenção (composta por representantes dos parlamentos de cada Estado-membro, chefes de Estado ou de governo e elementos do Parlamento Europeu e da Comissão). No entanto, as conclusões do Conselho não mencionam o relatório dos eurodeputados. "O Conselho Europeu abordará as reformas internas nas suas próximas reuniões com vista a adotar, até ao verão de 2024, conclusões sobre um roteiro para os trabalhos futuros", lê-se no comunicado..Citaçãocitacao"Este processo feito pelo Parlamento Europeu não correu como se queria porque não foi cirúrgico. Obteve apoio inferior ao expectável, impondo pouca pressão no Conselho para este agir." Paulo Rangel.Para Rangel, esta foi uma oportunidade perdida. Em primeiro lugar, pelo timing escolhido, a pouco mais de seis meses das eleições europeias. E depois considera "estrategicamente errado não ser uma proposta concreta e cirúrgica". Ou seja, o Conselho não deverá tomar qualquer iniciativa antes do verão de 2024..O Conselho de Segurança das Nações Unidas é o órgão internacional no qual o uso e abuso do direito de veto - reservado aos cinco membros com assento permanente - tem não raras vezes levado à incapacidade de agir (veja-se os casos recentes da Ucrânia e de Israel-Hamas) e à consequente descredibilização do próprio órgão e, por extensão, das Nações Unidas..A URSS/Federação Russa é o campeão do uso do veto (126 ocasiões, incluindo a entrada de Portugal na ONU), seguida dos EUA (84), Reino Unido (29), China (18) e França (16). Há uma fórmula prevista para circum-navegar a inação do Conselho de Segurança, através da resolução 377, que empresta à Assembleia Geral da ONU poderes para realizar sessões de emergência, mas o resultado da última (sobre a Ucrânia) foi apenas simbólico..cesar.avo@dn.pt