Revelação -Os escritores e o sexo

Acaba de ser publicado um livro que desfaz o mito segundo o qual escritores e escritoras têm uma vida sexual escaldante. Between the Sheets (Entre os Lençóis, em português), de Lesley McDowell, conta fracassos amorosos que por vezes tiveram consequências trágicas: se Simone de Beauvoir angariava amantes para Sartre e Hilda Doolitle casou com Ezra Pound mas gostava de mulheres, Sylvia Plath meteu a cabeça no forno, ligou o gás e matou-se.
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Dizem as estatísticas de mercado que o público sente uma curiosidade insaciável pela vida íntima dos escritores – especialmente casais de escritores. Um dos motivos – além da coscuvilhice pura e simples – deve residir na ilusão de que, se os prosadores conseguem urdir vidas ficcionais onde as coisas se encaixam, as suas existências reais irão fornecer exemplos ainda mais instrutivos.

Um dos méritos do livro Between the Sheets: The Literary Liaisons of Nine 20th Century Women Writers é precisamente dissipar aquela miragem. Lesley McDowell atesta que geralmente os escritores são mais trapalhões na vida quotidiana do que as outras pessoas. Para tanto, a autora passou a pente fino a relação de nove pares de pombinhos literários: Katherine Mansfield e John Murry; Hilda Doolittle e Ezra Pound; Rebecca West e H. G. Wells; Jean Rhys e Ford Madox Ford; Anaïs Nin e Henry Miller; Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, Martha Gellhorn e Ernest Hemingway; Elizabeth Smart e George Barker; e Sylvia Plath e Ted Hughes. Alguns nomes podem soar menos familiares aos leitores, mas acreditem: o talento per capita aqui era abundante.

Então, se não foram felizes para sempre, ao menos o sexo deve ter sido sísmico – com toda aquela imaginação a bordo… Certo? Errado. Ok, Saul Bellow, nobel da Literatura, ronronou: «Se és escritor, toda a gente quer ir para a cama contigo.» Bem, eis uma portentosa extrapolação. Provavelmente Bellow pensava mesmo aquilo, então toda a gente dormia com ele. Mas juro a pés juntos que alguns de nós temos de suar a camisola e muitas vezes chuchar no dedo.

Tanto as coisas entre os casais literários não são um mar de rosas que, por exemplo, Sylvia Plath meteu a cabeça no forno, ligou o gás e matou-se; Doolittle casou com Pound mas gostava de mulheres e Simone de Beauvoir angariava amantes para Sartre. Todavia, a maior virtude de Between the Sheets é desmantelar um mito. Ou seja, o de que a responsabilidade de tanto infortúnio foi sempre da misoginia dos parceiros masculinos. Como a autora diz: «Estas nove artistas não foram de modo algum vítimas: escolheram conscientemente o seu destino e sem o subterfúgio da vitimização.»

Sensibilidades

O sexo era sofrível por causa do egoísmo e/ou da promiscuidade varonil? Logo de caras, Katherine Mansfield avisou o marido: «Primeiro sou escritora, depois sou mulher.» Ora, mas as autoras não usam a sua sexualidade na escrita, como fazem os autores – aliás, como fazem todos os grandes ficcionistas, independentemente do género, que utilizam tudo o que a vida lhes traz? Tudo bem, Ezra Pound criou o nom de plume de Hilda Doolittle (H.D.) mas será isto uma manipulação tão medonha? Ah, e ele dactilografava os manuscritos dela, um gesto que não parece lá muito porco chauvinista.


Henry Miller era um fauno priápico que ou não pensava em nada ou só pensava naquilo? Façamos de conta que sim. Mas Anaïs Nin (interpretada no cinema por Maria de Medeiros) deu-lhe o troco, taco a taco – e talvez até com algum juro. De facto, TODAS as nove escritoras aqui examinadas – muitas delas mártires para hagiógrafas feministas – tiveram casos com homens casados ou enquanto elas próprias estavam casadas.
Martha Gellhorn, uma das melhores repórteres de sempre (especializada em teatros de guerra…) foi de longe a mais esperta das mulheres de Hemingway. E não era nenhuma florzinha de estufa: sempre se recusou a ter um filho com ele e mais tarde adoptou um: «Não há necessidade de parir uma criança quando se pode comprar uma.» Escreveu que o autor de O Velho e o Mar «foi o homem menos gentil que conheci, uma espécie de suíno». Não, ela não queria dizer ideologicamente: «Herdou do pai o gosto por sandes de cebola e, em Espanha, gostava de as mastigar com ingredientes locais e goles copiosos do seu cantil cheio de whisky – eis uma mistura nauseabunda.»

Em 1942, ao saírem de uma festa na qual se enfrascara, Hemingway teimava em conduzir. Quando Martha ocupou o volante e arrancou, ele esbofeteou-a. Ela abrandou a velocidade e estampou o adorado (e novo em folha) carro do romancista contra uma árvore. Deixou o marido lá dentro, feito num oito, e apanhou um táxi.

Os exemplos mais eloquentes (e talvez as duplas mais brilhantes) são os pares Ted Hughes/Sylvia Plath e Sartre/Beauvoir. Enquanto Sylvia se instalava na fábula com uma sensibilidade de cristal, Ted era pintado como um engatatão impiedoso, com mais namoradas do que Cristiano Ronaldo (e ainda mais novas). Pura treta maniqueísta. Evidências irrefutáveis (para não falar nos seus próprios poemas e textos autobiográficos) demonstram que as perturbações de Plath vinham de longe – de quando ela nunca tinha visto o marido mais gordo. E tão-pouco é verdade que Hughes proferiu este pavoroso (mas divertido) epigrama de humor negro, depois do suicídio da mulher: «Nesses anos todos, meter lá a cabeça foi a única coisa boa que ela fez no nosso fogão.»

Quando, há dois anos, a França começou a comemorar o centenário do nascimento da virtual mãe do feminismo, as solenidades foram ensombradas pela abertura de uma caixa de Pandora sobre a vida íntima da autora de O Segundo Sexo (com a sua frase de efeito: «Uma pessoa não nasce mulher – torna-se mulher.» O que é verdade, pelo menos no caso de Roberta Close, aquele atraente transexual brasileiro). É certo que ainda foram a tempo de atribuir o nome de Simone de Beauvoir a uma das pontes sobre o Sena e de realizar um seminário na Sorbonne.

Mas, logo depois, haja roupa suja para lavar! O L’Express interrogou-se se o país estava pronto para desafiar um ícone. Parece que estava. Pesquisas denunciaram uma «libertinagem calculada» da escritora – ela terá professado um ocasional lesbianismo só para «chocar a burguesia». Mais: a pensadora sofria de «complexo de Pigmalião». O Pigmalião, claro, era Sartre (que jamais escreveu uma linha sobre ela). O casal (conhecido como «o Fred Astaire e a Ginger Rogers do existencialismo») nunca casou nem juntou as escovas de dentes – manteve até ao fim uma «relação aberta», baseada na «honestidade».

Ficções

Ao menos da boca para fora. O que as investigações revelam é que a matriarca do feminismo se sujeitou ao patriarcalismo do filósofo, um tipo glacial, mandão e machista (enfim, o estereótipo do «marido burguês»). Pior: Simone volta e meia fazia de proxeneta de Sartre, ajudando-o a seduzir jovens alunas de ambos (o filósofo não era propriamente um pão). Nas suas penosas Memórias, Bianca Lamblim conta que, ainda na cama de hotel em que acabara de perder a virgindade, ouviu Sartre a armar-se: «A criada ficará atónita, pois ontem desflorei outra rapariga neste mesmo quarto.»

McDowell não desmente tais factos – só realça que Simone «escolheu-os», e levou a vida que quis. De Beauvoir admitiu que teve o seu primeiro orgasmo aos 39 anos, não com o filósofo zarolho, mas com o romancista americano Nelson Algren. Numa carta, ela comunica a Algren o seu anseio de «lavar-te a loiça, de avental, e calçar-te os chinelos quando chegares a casa – e serei fiel como uma esposa árabe». Ah, essas feministas sabem como estragar um homem com mimos…

Portanto, o que Between the Sheets comprova é que as ilusões sobre a vida amorosa dos ficcionistas não passam de… ficção. Afinidades electivas? Ajudam mas não garantem nada. E não são sequer uma exclusividade literária: médicos casam com médicas, arquitectos com arquitectas, cozinheiros com cozinheiras. Pensando bem, casos de amor entre colegas de trabalho acontecem até em conventos.

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