Retornar, ou seja, tornar vivas as memórias que temos de África
"Não trouxemos nada, nada, nada. Não podíamos trazer nada." Há uma voz que repete a palavra nada como um lamento. E logo a seguir outra voz: "Os meus pais viveram toda a vida da terra, chegaram cá e não tinham terra. Ficaram perdidos." E depois outra voz: "Esta não era a minha terra, eu vim para cá mas não sou de cá." E depois outra voz. As vozes cruzam-se, intercalam-se, contradizem-se. As vozes pertencem aos doze rostos fotografados por Bruno Simões Castanheira e que estão ali à nossa volta. Não há nomes, não há referências, apenas os rostos e as vozes que contam as memórias de quem foi para a África e voltou. Ou de quem nasceu em África e depois veio para Portugal. Ou até de quem nasceu em Portugal com as memórias de África na pele. É destas pequenas histórias que se faz a história maior na exposição Retornar - Traços de Memória, que se inaugura hoje na Galeria Av. da Índia, em Lisboa.
Iniciativa da EGEAC, a empresa municipal de cultura, o roteiro desta exposição começa no Padrão dos Descobrimentos onde o atelier Silva Designers criou uma instalação a partir de uma fotografia de Alfredo Cunha tirada há precisamente 40 anos naquele mesmo sítio, mostrando pilhas de contentores, vindos em navios, à espera de serem entregues aos seus donos. Viviam-se as independências de Angola e Moçambique, a guerra colonial terminava mas as guerras continuavam nos territórios. Durante todo o ano de 1975, foram muitos - centenas de milhares - os que deixaram as colónias (para Angola foi até organizada uma ponte aérea). Vinham de avião, com uma mala apenas, e enviavam os contentores com tudo o resto - tudo o que era possível trazer dentro de um contentor.
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O que é retornar?
"O plano de repatriamento garantia transporte aéreo a todos os que quisessem sair de Angola até ao dia da independência. As linhas comerciais de voo tinham desaparecido, todos os aviões estavam a encher-se com os milhares de desalojados (...) Nos aeroportos de Nova Lisboa e Luanda (...) milhares de pessoas, novas e velhas, doentes e sãs, dormiam ali; alimentavam-se de frutas, conservas e bolachas; levavam os documentos e as fotografias mais importantes, o ouro e as jóias, quando os tinham, o brinquedo preferido das crianças se fosse fácil de transportar. Gente que trocara um automóvel por um maço de cigarros, que entregara aos criados as chaves de vivendas ricas, que dera milhares em dinheiro angolano por poucas centenas de escudos portugueses, sentia uma resignação cansada." - o relato está em O País Fantasma, ficção de Vasco Luís Curado publicada este ano.
O momento é também recordado por Isabela Figueiredo no seu Caderno de Memórias Coloniais, publicado em 2009 e que este ano ganhou uma edição aumentada: "1975, novembro. Voos da TAP esgotados há meses, para qualquer destino. Nos dias anteriores tinha havido um corrupio. As malas. Os fundos falsos. As calças de La Finesse verde-alface e amarelo-canário, para o inverno português, tão cinzento e castanho azul escuro. (...) Lourenço Marques esvaziava-se de brancos, ricos e pobres, desde muito antes da independência. Tínhamos ficado para o fim. O meu pai acreditava num reviralho, numa África branca na qual os negros haviam de se assimilar, calçar, ir à escola e trabalhar. Os negros haviam de nos sorrir, sempre, e agradecer o que fizéramos pela sua terra, quer dizer, pela nossa terra."
Retornar. A carga que esta palavra traz é quase maior do que aquela que veio nos contentores. A antropóloga Elsa Peralta, comissária da exposição, explica que "a palavra retornado foi usada como alcunha, como ofensa, era um termo pejorativo. E, além disso, não é fidedigna, porque muitas das pessoas de que estamos a falar não retornaram para nada porque nunca tinham estado em Portugal. Não queríamos usar a palavra retornado porque não queríamos fixar uma categoria de pessoas".
Mas, por outro lado, a palavra existe e é institucional, havia o IARN que era o Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais. "Não podemos fugir a esta palavra porque corremos o risco de ninguém saber do que estamos a falar." A solução passou por transformar o nome em verbo - "Este retornar é um exercício de todos, os que vieram, os que nunca tinham vindo, os que ficaram, nós que estamos hoje aqui a pensar nisto."
É um exercício que a investigadora anda a fazer há alguns anos, procurando estes testemunhos. "Não é fácil, porque ainda hoje, há muitas pessoas que não querem falar", diz. " Falo com as pessoas e todas têm uma memória muito afetiva, muito pessoal, forte, disto tudo, mas depois parece que há um tabu, não querem falar." Elsa Peralta insiste. Vai conquistando a sua confiança. Volta uma e outra vez. Sempre que possível, grava essas conversas com um gravador (ainda pensou utilizar uma câmara de vídeo mas rapidamente desistiu da ideia uma vez que intimidava os entrevistados), mas muitas delas não estão sequer registadas. Consulta fóruns de pessoas que estiveram em África, vai aos almoços e aos encontros, uns apresentam outros. Neste momento, tem 45 testemunhos registados (entre os quais estão os 12 destacados na exposição) e muito outro material.
"Esta é uma exposição sobre a memória. Não estamos aqui a fazer história." Claro que existe uma contextualização histórica através dos recortes de jornais e outros materiais que compõem um dos núcleos da exposição - em gavetas de arquivo, que os visitantes terão de puxar e manipular, é possível viajar até África com os primeiros colonos, idos em campanhas de povoamento no final do século XIX, ou na grande vaga após a Segunda Guerra Mundial. "Para perceber a vinda é preciso, primeiro, perceber a ida", diz Elsa Peralta. Mas também é possível ver como foram noticiados o 25 de abril, as independências e o movimento de retorno, na altura, nos jornais de Lisboa e das colónias. E, por fim, viajar um pouco por alguns dos documentos do arquivo do IARN que se encontram, encaixotados, no Arquivo Histórico Ultramarino, sem nunca terem sido estudados ou tratados. Um arquivo, como as memórias, ainda por explorar.
A história está lá, como pano de fundo, mas o que interessa a Elsa Peralta nesta exposição "é falar com pessoas concretas e perceber o que é que elas recordam, o que é que ficou nelas daquele acontecimento. E isso é um risco, porque muitas vezes aquilo que as pessoas recordam é contrário ao que o historiador define como verdade."
Ali estão Timóteo, negro, caçador de Moçambique. Mena, que tinha 20 anos e três filhos quando teve de fugir de África. A avó Maria José, descendente de colonos que se instalaram em Angola no final do século XIX e que sempre viveu no mato. Pedro Coquenão, músico dos Batida, vindo de Angola com apenas um ano. E outros. Histórias muito diferentes que apenas se vislumbram nas fotos de Bruno Simões Castanheira mas também nas mais de 600 fotografias retiradas de álbuns de família e espalhadas por duas paredes da galeria - casamentos, crianças a brincar no mato, paisagens, mesas postas. Um mosaico de memórias soltas.
Esquecer, lembrar, contar
Lê-se no caderno de Isabela Figueiredo: "Agora vai que já é tarde, vai, vai e neste instante em que tudo já está perdido, em que já não há volta, em que entro por essa porta de vidro, após os beijos formais, um sentimento estranho que não consigo controlar, um vazio, um nunca mais vou voltar, uma coisa que se perde, um vazio."
Se quiséssemos encontrar um ponto de ligação entre estas histórias, seria talvez a perda. "Houve aquilo a que chamo a vergonha do desapossamento, tanto individual como nacional. Vimo-nos desapossados do império e de uma parte da nossa identidade nacional e, ao mesmo tempo, as pessoas vêem-se desapossadas de tudo o que têm - do carro, da casa, da terra, do cemitério onde enterraram os seus familiares, dos amigos", explica Elsa Peralta.
Mais de meio milhão de pessoas vieram das colónias após o 25 de abril. Chegaram com muito pouco. Poucos pertences, pouco dinheiro, muitos deles sem casa onde morar, sem família para os acolher. O IARN colocou muitas dessas pessoas em pensões e hotéis. Essa experiência está contada em O Retorno, o livro que Dulce Maria Cardoso publicou em 2011:
"Em quase todas as respostas uma palavra que nunca tínhamos ouvido, o IARN, o IARN, o IARN. O IARN paga as viagens para a terra, o IARN põe-nos em hotéis, o IARN dá-nos comida, o IARN dá-nos dinheiro, o IARN ajuda-nos, o IARN aconselha-nos, o IARN pode informar-nos. Nunca tinha ouvido tantas vezes uma palavra, o IARN parecia mais importante e mais generoso do que deus. (...) Agora somos retornados. Não sabemos bem o que é ser retornado mas nós somos isso."
Como explica Elsa Peralta: "Houve Estado, o Estado arranjou os meios para a ponte aérea, colocou as pessoas nos hotéis, houve apoios, mas houve uma tremenda desorganização - e isso dá conta de como o Estado não supunha que isto viesse a acontecer." As pessoas não estavam preparadas para este regresso abrupto, mas o Estado também não.
Dulce Maria Cardoso relata os sentimentos de quem veio sem nada e teve que se sujeitar a pedir tudo. Roupas quentes para enfrentar o inverno frio da metrópole. Um lugar na escola onde as crianças retornadas eram gozadas pelo seu sotaque. Um emprego. Comida. Casa.
"Há uma dimensão de humilhação" que explica o silêncio que se fez em volta do tema. Não um silenciamento, mas um silêncio. "Primeiro, as pessoas não acreditavam que era para vir, depois vieram mas pensaram que poderiam voltar, que as coisas iam acalmar. Até que perceberam que não iria haver retorno - o outro retorno. E há a urgência do momento, da vida que é preciso viver, procurar um emprego, deixar ficar para trás, mas com mágoa. As pessoas sentiram-se ilegítimas aos olhos do Estado e depois também aos olhos dos familiares que os acolheram. Perceberam que não valia a pena falar mais sobre isso, que o melhor seria continuar em frente. Mas com uma zanga muito grande, um ressentimento." É dessa mágoa que vem o silêncio.
Só a partir dos anos 80 o tema começou a aparecer, timidamente, no espaço público, sem se limitar apenas ao espaço académico. Foi nessa altura que reabriu o Padrão dos Descobrimentos e que foi criada a Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos. A reaproximação a África faz-se pela celebração, pela revitalização dos espaços públicos na zona de Belém, as boas memórias do Império; e só mais tarde começam a aparecer as memórias da guerra colonial, dos que combateram, dos que morreram, dos que perderam os seus. Em 1979, António Lobo Antunes escreve Os Cus de Judas; Lídia Jorge publicou em 1988 A Costa dos Murmúrios; em 1991 Hélder Macedo publicou Partes de África.
Mas só nos anos 2000 o retorno começou a ser contado - através de livros (Isabela Figueiredo, Dulce Maria Cardoso e outros, como a recente Djaimilia Pereira de Almeida), obras de arte (Ângela Ferreira, nascida em Moçambique em 1968, e Vasco Araújo, nascido em Lisboa em 1975 e sem qualquer relação familiar com África são alguns dos que têm problematizado estas questões), programas de televisão, como a série E Depois do Adeus, que retratava a vida de uma família obrigada a deixar África em 1975, e que passou na RTP em 2013:
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"Passa muito tempo até termos voz, até termos saldado, a bem ou mal, a dívida que pensávamos dever", escreve Isabela Figueiredo.
"É preciso tempo", diz também Elsa Peralta. E talvez este seja o tempo certo. Manuel Santos Maia, o artista plástico que ali apresenta também uma instalação a que chamou Para Depósito e que reúne uma série de objetos da sua memorabilia familiar - mobília, livros, quadros, cartas, selos - fala da necessidade de "rebater o silêncio". No seu caso, a necessidade de falar sobre este assunto surgiu em 1999, com a morte da avó que tinha ido para Moçambique em 1939 e que tinha voltado, como toda a família, após a independência. "Foi a ausência das histórias da minha avó que me fez procurar o meu passado", conta o artista, hoje com 45 anos.
"A rememoração é um processo de reencontro, quis registar as memórias da família, os testemunhos dos que estavam vivos, antes que se perdessem, e fui percebendo que havia narrativas diferentes, que não coincidiam. Depois comecei a olhar para os objetos que tinha lá em casa e a procurar as suas biografias. Os objetos também contam histórias." Desde essa altura, desenvolveu um projeto a que chamou Alheava - referência ao alheamento que os portugueses mostravam em relação a este tema. Um projeto cuja primeira fase se concluiu com o regresso do artista a Moçambique, no ano passado.
"Durante muito tempo as pessoas tiveram medo. Não se queriam comprometer, não queriam ser conotadas com o colonialismo. Mas o tempo passou. Já há uma distância e há uma geração que já pode falar disso com essa distância", diz Manuel Santos Maia.
Elsa Peralta confirma: "Esta exposição serve para despertar memórias. Para pôr as pessoas a falar." Os que viveram em África muito tempo. Os que quase não se lembram. Os que já nasceram aqui. Vão encontrar-se nesta galeria, 40 anos depois, para retornar. E vai ser assim, durante quatro meses.
RETORNAR - TRAÇOS DA MEMÓRIA
Galeria Av. Índia, Lisboa
até 29 de fevereiro de 2016
PROGRAMA PARALELO
Intervenção urbana: A fotografia de Alfredo Cunha dá o mote para a instalação de contentores de Silva Designers, junto ao Padrão dos Descobrimentos.
Teatro: Joana Craveiro vai apresentar a sua performance Um Museu Vivo de Memórias Pequenas Esquecidas, no Padrão dos Descobrimentos. No dia 21, às 17.00. E André Amálio estará em janeiro no Teatro São Luiz com o espetáculo Portugal Não é um País Pequeno, a partir de relatos de antigos colonos portugueses.
Debates e visitas: Ao longo de quatro meses haverá uma série de debates, com Adriano Moreira, Eduardo Lourenço e Dulce Maria Cardoso, entre outros. Académicos como Maria Filomena Molder e António Pinto Ribeiro irão visitar e comentar a exposição. "Vamos convidar pessoas para virem aqui destruir o que fizemos. O importante é criar debate em torno deste tema", diz Elsa Peralta.
Site: já foi criado um site sobre a exposição que, para além do programa atualizado, vai estar aberto a todos os que queiram partilhar histórias, memórias, fotografias. Como um ponto de encontro.