Nome fundamental do Cinema Novo do Brasil e, mais do que isso, símbolo universal das "novas vagas" das décadas de 1960/70, Glauber Rocha (1939-1981) está de volta aos ecrãs portugueses através de seis longas-metragens, em cópias restauradas, distribuídas pela Nitrato Filmes..Podemos, assim, ver ou rever o seu título de estreia, Barravento (1962), sobre as convulsões laborais e os paradoxos místicos de uma aldeia de pescadores, a par da lendária trilogia de parábolas políticas, eivadas de contundente realismo, formada por Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e António das Mortes (1969) - no primeiro e no terceiro surge a personagem, "maior que a vida", de António das Mortes, "matador de cangaceiros", interpretada pelo magnífico Maurício do Valle (1928-1994). O conjunto completa-se com O Leão de Sete Cabeças (1970), em que a simbologia brasileira se expande, em inusitado delírio estético, para os cenários africanos da geopolítica, aliás através de um esquema de coprodução internacional (Brasil/Itália/França), e a longa-metragem final, A Idade da Terra (1980), narrativa que tem tanto de comovente desespero histórico como de desequilibrado experimentalismo formal..Ao tomar conhecimento deste ciclo de filmes - mais uma expressão do importantíssimo trabalho de redescoberta das memórias do cinema desenvolvido por distribuidores e exibidores da chamada área independente -, não pude deixar de recordar o encontro com Glauber, quando a Cinemateca Portuguesa lhe dedicou uma retrospetiva. Foi poucos meses antes do seu falecimento, vítima de uma septicemia, a 22 de agosto de 1981, no Rio de Janeiro - contava 42 anos..Exilado político, Glauber vivia entre nós, em Sintra. Integrando na altura o sector de programação da Cinemateca, fui responsável pela coordenação do catálogo que acompanhou a retrospetiva, tendo-o entrevistado (em Sintra, precisamente) no dia 8 de abril de 1981. Foi uma inesquecível conversa acompanhada (e fotografada) por Paula Gaitán, mulher de Glauber, também cineasta - ela viria, aliás, a coligir imagens e memórias desse período no documentário Diário de Sintra (2008)..Tinham decorrido quase duas décadas sobre Barravento e outros títulos emblemáticos das transformações estéticas e políticas concretizadas pelos autores do Cinema Novo - lembro apenas as referências modelares de Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e também A Grande Cidade (1966), de Carlos Diegues. Por um lado, reconhecendo a dimensão política do Cinema Novo, Glauber recusava encerrá-lo na mera "ilustração" de um qualquer discurso panfletário: "(...) a questão da criatividade ultrapassa as questões políticas, inclusive a criatividade para se afirmar como tal precisa ultrapassar as condições políticas adversas. Isso foi o que se passou com o Cinema Novo." Por outro lado, contrariava qualquer formatação mais ou menos moralista da herança dos seus filmes: "O conceito de Cinema Novo, que muitas vezes nos acusaram no Brasil de ser um conceito escolástico e académico, nunca existiu. Sempre foi um anti-conceito, quer dizer, o Cinema Novo nunca se proclamou como escola artística, nunca determinou pressupostos políticos ou estéticos para a criação da obra de arte, nunca procurou burocratizar ou normalizar nenhum princípio criativo.".A atualidade das palavras de Glauber tem qualquer coisa de perturbante. Nessa medida, para lá da contagiante energia criativa da sua visão do cinema, o retorno destes seis filmes aos ecrãs portugueses envolve uma dimensão pedagógica que, mais do que nunca, importa encarar e valorizar..DestaquedestaqueSeis filmes regressam às salas escuras para uma fascinante redescoberta de um autor fundamental do Cinema Novo do Brasil..Assim, Glauber chama-nos a atenção para a possível redução da obra de arte a um "comentário" daquilo que faz manchete no espaço jornalístico. Não que essa obra seja estranha ou exterior a tal contexto (bem pelo contrário!), antes porque o labor do artista não existe para duplicar as linhas de força da atualidade mediática, muito menos para confirmar a suposta intocabilidade dos "temas" com que essa atualidade se afadiga a mobilizar a consciência de cada um de nós..Daí o seu distanciamento de qualquer visão "sagrada" do espectador: "O problema do espectador na obra de arte é um problema que eu não considero, digo-lhe isto com a maior sinceridade. Porque eu acredito que a obra de arte é um produto da loucura, no sentido em que fala o Fernando Pessoa, que fala o Erasmo, quer dizer, a loucura como a lucidez, a libertação do inconsciente.".Daí também a recusa de qualquer estatuto corporativo: "É por isso que eu não me considero um cineasta profissional, porque se o fosse teria que atuar segundo o ritual da indústria cinematográfica. Considero-me um amador, como o Buñuel, alguém que ama o cinema...".Jornalista