Receita para cozinhar uma guerra em lume brando

<p>Entre 1961 e 1974 foram muitos os acontecimentos que tiveram a Guerra Colonial como motor de contestação. O regime fortaleceu a PIDE e, para lá da acção em território continental, permitiu que o seu braço se alongasse para fora das fronteiras até às colónias. A única situação que a polícia e o regime não conseguiam abafar era o descontentamento cada vez mais crescente de levas de portugueses que embarcavam para África que, conforme se adiava uma solução política para o Ultramar, ia-se fazendo ouvir-se cada vez com mais força.</p>
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A 14 de Abril de 1961, Salazar dá posse ao seu governo remodelado e garante que a situação de sublevação em Angola «é o objectivo que vai pôr à prova a nossa capacidade de decisão». As palavras com que define a resposta portuguesa ao levantamento de 4 de Fevereiro e ao massacre de centenas de brancos a 15 de Março, em Angola, é sintetizada nas palavras que ficaram famosas: «Rapidamente e em força.»

Mais do que famosas, estas palavras irão conduzir a actuação da sua governação até ao fim e colocar o sucessor Marcelo Caetano entre a espada e a parede, impedindo-o de encontrar uma solução política para territórios dezenas de vezes maiores do que o continente - sob a observação atenta da comunidade internacional e com uma guerrilha executada pelos movimentos de libertação do ultramar português.

Marcelo Caetano fica entre a «espada» de uma solução militar que apenas visa adiar uma solução e a «parede» de uma sociedade que, na década de 1970, está a iniciar uma quase guerrilha interna para encontrar a referida solução sempre adiada para o fim de um império com séculos de existência.

A série de acontecimentos políticos que se verificam no próprio ano do início da Guerra Colonial é dramática. Logo em Janeiro, Henrique Galvão afronta o regime com o assalto e desvio do paquete Santa Maria; segue-se o ataque à prisão de São Paulo e a uma esquadra de polícia em Luanda; o levantamento da UPA no Norte de Angola e o envio dos primeiros militares para pôr ordem nessa parte do império. O massacre de 15 de Março é uma afronta e exige resposta firme, que se pode observar logo a 4 de Abril com o envio de um contingente de soldados. Entretanto, internamente o general Botelho Moniz intenta uma revolta contra Salazar, que é debelada mas fornece ao governante a radiografia dos seus cada vez menos apoios.

No plano internacional, a 18 de Abril, as facções nacionalistas de África reúnem-se em Casablanca e organizam-se, enquanto a 21 do mesmo mês as Nações Unidas aprovam uma resolução que exige de Portugal reformas em Angola.

O ano de 1961 ainda reservará vários desaires políticos a Salazar e até ao fim do seu mandato suceder-se-ão dezenas de outros, que o seu sucessor Marcelo Caetano será impotente para contornar ou ultrapassar. Os estudantes manifestam-se constantemente contra a falta de liberdade; a guerra vai perdendo o apoio inicial dos portugueses [milhares de cidadãos desertam e emigram]; o Partido Comunista Português (PCP) vai organizar uma resistência activa após a fuga de Álvaro Cunhal do forte de Peniche e os próprios militares secundarão o pensamento cada vez mais generalizado dos portugueses sobre a necessidade de se encontrar uma solução política para o ultramar.

Entre 1961 e 1974, Salazar e Caetano serão obrigados a abafar os efeitos de uma guerra nas colónias que é devastadora para a sua governação. Todos os meios serão utilizados para manter a guerra na fronteira de uma resposta que se queria entendida como de acção policial em vez de militar. A receita preparada inicialmente por Salazar irá permitir cozinhar por alguns anos essa guerra em lume brando. Caetano, que não obtém resultados assim tão satisfatórios em África, fará ferver durante mais meia dúzia de anos o caldeirão em que os seus generais combatem os movimentos independentistas até considerarem que, à excepção do cenário da Guiné, a receita funcionou.

Serão, no entanto, os próprios líderes militares a contestar a ausência de respostas políticas por parte de Marcelo Caetano no momento em que estas se tornarão cada vez mais necessárias para responder aos resultados do esforço de guerra. O general Spínola dará, com o seu livro Portugal e o Futuro, a machadada final nesse imobilismo, abrindo caminho à insurreição interna de umas forças armadas que há muito não escondem o seu desagrado perante um conflito sem fim.

Além de quererem esmagar os desejos de independência, tanto Salazar como Caetano tiveram uma prática de abafar os ecos da Guerra Colonial no continente. Por mais estranho que pareça face ao volume de portugueses que estiveram no terreno africano, esse desejo foi bastante conseguido ao longo dos anos. Estranhamente, os soldados iam e vinham e o silêncio sobre a violência das experiências de cada um era grande.

Muitos filhos só décadas mais tarde ouviram da boca dos pais o relato do que foi a sua ida à guerra, e muitos militares vítimas da troca de tiros e explosão de minas só muitos anos depois é que se viram, e mesmo assim parcialmente, ressarcidos dos danos físicos e psicológicos. Nem num caso nem no outro as situações foram resolvidas de ânimo leve; os filhos iam sabendo da actuação dos pais em múltiplos convívios que passaram a realizar após o fim da Guerra Colonial e as indemnizações foram tiradas a ferros ao Estado.

Houve várias situações que romperam com o abafar dos ecos da guerra. Em 1970, o PCP fundou um braço armado, a Acção Revolucionária Armada (ARA), que fez explodir dois navios atracados em Lisboa e desfez aeronaves que iriam ser enviadas para o cenário de guerra. Os estudantes protestaram por várias vezes violentamente contra a política e muitos foram presos por se oporem à mobilização; religiosos bastante conhecidos recusaram ser o veículo do apoio oficial da Igreja Católica à guerra; as Brigadas Revolucionárias (BR) fizeram explodir as instalações subterrâneas da NATO na Costa de Caparica.

Feitas as contas, Salazar e Caetano encontraram sempre forma de silenciar um pouco mais a guerra mas nunca foram capazes de achar uma solução política, ao contrário do que fizeram os restantes países colonialistas da Europa.

Inevitabilidade

O historiador Rui Ramos considera que o esforço para abafar os ecos da guerra no país foi crescente à medida que o tempo passava: «No princípio, a tendência era apoiar Salazar, que se referia ao que se passava como operações de polícia, em vez de aceitar a existência de uma guerra.»

Segundo o historiador, a utilização de imagens violentas dos massacres de 15 de Março de 1961 e a hostilidade dos aliados e dos Estados Unidos favoreciam, diz, «que esta fosse transformada numa missão de soberania, com o intuito de impedir infiltrações armadas pelas fronteiras».

Abafar era fácil porque «existia um nível baixo de vítimas que, conjugado com a censura e com a polícia política, não proporcionavam uma visão correcta da dimensão da Guerra Colonial para os portugueses como acontecia nos Estados Unidos com o Vietname, porque aí existia uma imprensa livre». Em Portugal, pelo contrário, «os jornais da época não propagandeavam as grandes operações militares como acontecia no Vietname nem havia um número de mortos sequer aproximado». Segundo as contas oficiais, diz, «houve três mil vítimas mortais na Guerra Colonial, muitas verificadas em danos colaterais e não no contacto directo com o inimigo, menos violento em África e do género bate e foge».

Rui Ramos acha que era fácil esconder a Guerra Colonial e recorda: «O governo de então só a deixava aparecer quando era mesmo necessário: não há na comunicação social grandes reportagens ou qualquer outro tipo de artigos, apenas as mensagens de Natal dos soldados que passavam na televisão e a imposição de condecorações no 10 de Junho.»

O que Salazar queria era, refere, «uma guerra barata e discreta para aguentar muito tempo. Com pequenos meios e pequenos resultados, onde ganhar é mostrar quem aguenta mais e vai retirando esperança de mudança aos movimentos independentistas. Situação diferente da da década de setenta, quando Spínola, na Guiné, e Kaúlza, em Moçambique, executam grandes operações cujos resultados alardeiam em comunicados».

Rui Ramos sublinha um dado pouco valorizado por outros historiadores: «O facto de a emigração para África ter aumentado até 1973 é sinal de que Angola e Moçambique não estavam associados à guerra. Os movimentos de libertação tinham poucos meios e não possuíam capacidade para obrigar os portugueses a pensar que a situação era diferente. Basta ver que se circulava à vontade na maior parte do território, pois era menos de cinco por cento a área onde existia guerrilha.» Esta realidade, alerta, «não diminui a experiência traumática de quem lá esteve», mas só se percebe a duração desta guerra porque quase não se dava por ela: «Lourenço Marques nunca foi tomada; o MPLA não teve o controlo do território angolano nem o PAIGC obteve o que pretendia na Guiné.»

Apagar

A escritora Lídia Jorge foi das primeiras a escrever um romance com o horizonte africano e a Guerra Colonial. Em A Costa dos Murmúrios relata a duplicidade das visões do colonizador e dos locais sob uma inteligente intriga: regista a versão romanceada de uma época nas primeiras três dezenas de páginas enquanto nas duzentas seguintes escalpeliza a verdade que crê estar por detrás. Não duvida de que a distância do tempo lhe tenha confirmado que «aquilo que está no romance foi mais trágico» do que o que aconteceu. «Quando o escrevi pensei que o que tinha acontecido perdurava mais no tempo e manter-se-ia como uma lição.» Mas, passado o tempo entre a publicação, em 1988, e a actualidade, considera que «a lição esvaiu-se no tempo e aquele é outro mundo». Lídia Jorge sente que a memória funciona como lição para hoje mas diz, «tenho a impressão de que se aprendeu pouco. Continuamos a destruí-la e mantém-se a mesma ideia de não respeitar o outro na sua inteireza».

A escritora não duvida de que em Portugal todos os matizes do tempo colonialista se esbateram com o tempo porque não aconteceu o seu registo: «Foi um tempo muito violento e sofrido mas não houve uma filmografia à altura, nem narrativas suficientes para contar o que aconteceu.» A razão é-lhe fácil de encontrar: «Houve uma pressão para que não se falasse e quem falou ficou como um cliché. A reacção das pessoas perante muitas obras que foram publicadas é a de estarem fartas - "já não queremos mais" -, porque houve um fenómeno poderoso que abafou a história da Guerra Colonial: o 25 de Abril. É um movimento de tal forma expansivo, amplo e com esperança para o futuro que quer pôr uma pedra nas dores recentes.»

Como professora, Lídia Jorge sentiu que se queria abafar a verdade daqueles tempos: «Fui professora aqui e em Moçambique. Cá, a guerra era zero, uma situação que não existia. A escola não falava do assunto, os programas apagavam a contemporaneidade para lá da Revolução Francesa. A literatura excluía também a actualidade e os alunos que iam até ao 7.º ano, que eram pouquíssimos, mal ouviam falar de Fernando Pessoa. Lá ainda era pior, porque aplicava-se exactamente os mesmos programas, para lá do desfasamento geográfico.»

Quanto ao papel dos militares, a escritora aponta para o esquecimento do seu passado colonial em detrimento do papel na revolução de 1974. Mesmo na política, o passado de África fica colado à pele dos protagonistas: «Mário Soares teve consenso em relação a tudo menos ao seu desempenho nessa questão. Como presidente, a única vez em que o vi sofrer uma certa contenda, até mesmo uma manifestação contra, foi junto do Monumento aos Mortos do Ultramar. Que, aliás, é muito pouco visitado, mesmo estando à beira-Tejo.»

Desgaste

O presidente da Liga dos Combatentes recebeu dos seus antecessores uma pesada tarefa para cumprir: a defesa dos direitos dos militares desde a Primeira Guerra Mundial. Por isso, quando se questiona o tenente-general Joaquim Chito Rodrigues sobre que nome dar ao conflito - Guerra Colonial, do Ultramar, em África? - responde assim: «Chamo só guerra.» Mas não fica sem explicar: «Eu fiz a guerra do ultramar, porque a política só depois do 25 de Abril a apelidou de Guerra Colonial. Antes, não havia Guerra Colonial mas as colónias e o problema colonial.» Ainda vai mais longe: «Hoje em dia, considero que a guerra não tem adjectivos: não é justa ou injusta, nem é do ultramar ou colonial. Em termos militares há várias, a nuclear, a convencional, a guerrilha, mas eu tenho para mim que esta é só guerra.»

Tendo estado no cenário africano em duas comissões de serviço, a primeira logo em 1962, Chito Rodrigues não tem dificuldade em caracterizar a guerra em África: «Foi uma guerra muito especial, porque Portugal foi confrontado com três frentes diferentes, simultâneas e a milhares de quilómetros de distância da retaguarda. Com necessidade de um gigantesco apoio logístico, que foi montado e sustentou as necessidades de uma guerra subversiva e de baixa intensidade, desgastante e prolongada no tempo.»

Para o general, a ideia que existe em alguns portugueses de se ter vivido uma guerra extremamente violenta só assenta na resposta dada ao massacre de 15 de Março de 1961: «Começou violentamente em Angola nesse dia e a população portuguesa reagiu. Não foi o governo mas a população portuguesa que o exigiu. Aquela frase de Salazar - "para Angola rapidamente e em força" - foi uma reacção natural e é preciso ter vivido esse momento para entender o que se passou. O resto são 13 anos de uma certa insistência política numa zona em que o vector militar garantiu condições para que a solução política fosse encontrada. Só que não o foi!»

O que veio a acontecer, na sua opinião, resume-se deste modo: «A população onde se ia recrutar foi-se cansando, os militares com duas, três e quatro comissões também, e há um momento em que passou a haver uma certa dicotomia entre uma fracção de indivíduos que foram ao ultramar, que nem eram dos quadros permanentes, e a quem foram pedidos muitos sacrifícios e feitas algumas promessas. Primeiro, as promessas e sacrifícios não foram aceites e, quando foram, verificou-se terem-no sido de um modo que chocou os oficiais e sargentos dos quadros permanentes, que foram ultrapassados nos seus direitos.»

Chito Rodrigues recusa aceitar a versão de que os soldados não sabiam ao que iam e que eram uns coitadinhos: «Esta forma de ler a guerra ou daquilo que as forças armadas fizeram em África só a posso adjectivar de doentia. Saíam daqui com uma instrução militar normal, porque ninguém vai preparado para a guerra mas, a pouco e pouco, foram-se adaptando e fazendo trabalhos extracombate, como acções de recuperação de populações, que foram o valor acrescentado.»

Quanto ao julgamento que a História fará desses 13 anos em África, só tem a dizer: «É bom que aqueles que viveram a guerra escrevam, falem e desabafem. Mas tenho para mim que a História correcta só se fará dentro de algum tempo, sobretudo quando aqueles que fizeram a guerra desaparecerem, depois de terem dado o seu testemunho, e que aconteça o mesmo àqueles que se opuseram à guerra. Nós vivemos há trinta, quarenta anos com a síndrome da Guerra Colonial: quem nos governa foi contra a guerra e, portanto, quem a fez é uma coisa para esquecer.»

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