E ressuscitar na praia, é possível? Sim, eu sei que desconseguir na reta final (o poético morrer com a praia à vista) não é bem o caso de Cavaco Silva, cujo drama aconteceu há muitas marés, talvez até no congresso da Figueira da Foz. Mas a hipótese que trago aqui é: não será possível, ainda, um desfecho feliz? Neste um mês e dez dias para sair do Palácio de Belém não se podia inventar um punhado de milagres que permitisse, ao cruzar com ele daqui a um ano, um enternecido: "Olhò professor Cavaco, que saudades!"?.A minha resposta generosa: sim, é possível. Logo que seja com a rapidez que o tempo curto exige, a coragem que o caso desesperado pede e os métodos profundos a que o enquistamento obriga. Urge fazer um vídeo já na próxima semana. Grosso modo, uma alocução ao país como Cavaco fez tantas, quando convocava as televisões. Mas diferente no conteúdo e na forma. Um vídeo simples e sincero, apesar de todo ensaiado..Sem a bandeira nacional ao lado, Cavaco de Silva de pé, sublinhando a silhueta elegante que mantém e livrando-o da secura que ele confunde com pose de Estado. Ao dirigir-se a nós, Cavaco sorria (uma revolução!), abria os braços e dizia: "Olá, sempre tive dúvidas e enganei-me um bom par de vezes. Peço-vos desculpa..." Só isso. Coisa direta, frases curtas e onde até as reticências são propositadas. Novo sorriso e um encolher de ombros traquina, como quem diz: "Que querem, sou humano..." Mais nada, vídeo acabado..Colocar o vídeo no YouTube. Deixar a divulgação a cargo da curiosidade pelo inusitado. Cavaco Silva humano seria viral como a velhinha que dá uma carga de pancada no bando de rapazolas que tentou levar-lhe a malinha. O importante será transmitir-nos um estilo inesperado que vai servir de isco. Engolido este, cada português vai ter a certeza do que Cavaco disse. Sem esperar, desta vez, pelas interpretações diversas dos comentadores sobre o que Cavaco "quis" dizer. Com ele humano não precisamos de mediadores..Claro que cada um fará a sua própria interpretação. O que é que Cavaco quis dizer? Para os portugueses comuns, brandos como é costume, fica o sorriso - este há de apagar todas as más impressões anteriores. Para os intolerantes culturais, o paternalismo: "O homem lá aprendeu a diferença entre o Thomas More e o Thomas Mann." Para os ingénuos, a ilusão: ele vai restituir a mais-valia que recebeu do BPN. Mas não interessa a disparidade dos "eu acho", o que conta é que ele virou pessoa. A partir daí, pode passar-se às outras fases do projeto. Ainda há um mês e uma semana para Cavaco Silva ir-se embora sem deixar só amargura..Deve seguir-se, então, o que eu chamo a fase de avistamentos. Mais uma vez, a coisa deve ser feita de forma cirúrgica, embora aparentando acaso. Uma manhã, Cavaco desce, sozinho, a calçada do palácio, vira à direita, passa pela fila dos que estão a comprar pastéis de Belém e para frente à passadeira. No passeio, espera por uma velhinha, ali há sempre uma, e quando ela se cruzar com ele, pega-lhe pelo cotovelo e leva-a ao outro lado da rua, com conversa gesticulada que se veja até dos Jerónimos. Ao atravessar, cuidar em saber o nome da senhora para se despedir em voz alta: "Então, até à próxima, Dona Idalina!" Mas, muita atenção: escolher uma velhinha que queira mesmo atravessar a rua. Seria contraproducente vê-la voltar para trás a abanar a cabeça..Este, o primeiro dos avistamentos. Se alguém do povo filma, tudo bem, mas confiar no diz que disse: "Cavaco foi visto a ajudar velhinha..." Programar outros avistamentos. Ir comer linguiça a Montalegre, fingindo-se escondido num boné e dizer que só lá vai depois da festa do fumeiro, quando há só povo, não turistas. Sentar-se no banco de espera do Hospital de Santarém, espirrando para um lenço: "Safa, esta gripe não me larga." No dia 21 de fevereiro, ir ao Tondela-Marítimo, para a bancada topo norte inferior (bilhete 15 euros), deixando cair no intervalo que recusou o bilhete de pessoa de mobilidade reduzida (10 euros)..Nesta altura, já não será necessário soprar a agenda secreta para a CMTV... Já todo o Portugal ouviu dizer que Cavaco andava por aí. A caça aos avistamentos do Presidente passou a ser um desporto nacional. "Onde andou hoje o Cavaco?", era a pergunta do marido a regressar a casa e o tema exaltante nos fóruns da TSF. Talvez surja uma polémica entre o historiador Rui Ramos e o maçon António Reis, cada um reivindicando quem Cavaco imitava ao passear escondido entre o povo: D. Miguel ou D. Pedro IV? Interrogado sobre o assunto, Cavaco pôs um sorriso (outro!) e disse: "Sou só um quase reformado que gosta de estar entre o seu povo." Na primeira semana de março já era uma unanimidade nacional.