Há mais de 40 anos, enquanto crianças, foram irradiados contra a tinha, uma doença "dos pobres" que atacava o couro cabeludo. Mais de 5300 portugueses da região norte, hoje entre os 55 e os 65 anos, foram submetidos na infância a raios X que lhes fez cair todo o cabelo. Agora estão a ser chamados e 125 foram já observados. Em 5 a 6% dos casos há evidências que apontam para um cancro que pode ter sido provocado pelas radiações..Tiróide, pele, cérebro e glândulas salivares são os órgãos que podem ter sido afectados pelas radiações sofridas pelos portugueses enquanto crianças. Globalmente, faz questão de salientar Teixeira Gomes, investigador e médico responsável por esta investigação, "a radiação não fez mal nenhum e afecta uma fatia pequena. Mas é a esses que queremos chegar." Por enquanto, o trabalho dirige-se só às pessoas da zona norte, cujos registos existem, e o grupo não tem ainda conhecimento sobre a dimensão nacional das sessões de radiação..O procedimento era normal na época e fez parte na altura de uma campanha sanitária nas escolas: quem tivesse lesões no couro cabeludo associadas à Tinea capitis era irradiado na cabeça de forma a erradicar o fungo. As doses de radiações eram baixas e pensava-se, na época, que isso seria suficiente para evitar as consequências nefastas dos raios X. Mas, afinal, a evidência científica veio demonstrar que mesmo em doses baixas as radiações provocam alterações que, décadas depois, podem levar ao cancro (ver texto ao lado)..À procura dos doentes.Teixeira Gomes é um médico cirurgião que sempre se interessou pelo cancro da tiróide. E, nesses casos, faz parte dos procedimentos médicos inquirir os doentes sobre radiações a que tenham sido sujeitos. Isso levantou sempre grande interesse no médico que, já em 1989, partiu à procura dos registos existentes sobre as campanhas de radiação. .Encontrou uma base de dados, referente às crianças que tinham à altura entre 3 e 12 anos (com grande incidência na idade escolar dos 6 e 7). Tentou então desenvolver uma investigação. Não conseguiu. Mas há ano e meio, ao referir a sua ideia a investigadores do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), o projecto construiu-se e o apoio, de 94 mil euros, veio da Fundação Gulbenkian..Depois de montada a investigação, os doentes começaram a ser observados em Março. Pessoas identificadas a partir dos registos das campanhas e a quem foi escrita uma carta, explicando o projecto. Devagarinho começaram a chegar os irradiados ao Hospital Pedro Hispano. Hoje, semanalmente, são vistas 25 pessoas pela equipa médica coordenada por Teixeira Gomes..A divulgação pública deste trabalho estava marcada para ontem, porque a equipa está a ver esgotado o método de detecção das pessoas afectadas. As moradas têm 50 anos, muitos mudaram de residência, as mulheres casaram e mudaram de nome. Portanto, a proposta agora é que sejam as pessoas a procurar os investigadores, ainda que haja receio "de algum pânico à volta disso". Mas, garante Teixeira Gomes, "a maior parte das pessoas que já vimos teve uma vida normal e o número de pessoas, na população geral, que virá a ter cancro é muito pequeno"..Até agora, foram detectados já algumas pessoas com cancro da pele. Mas, explica o investigador, "a maior parte dos doentes que vimos são da faixa litoral e pescadores, ou seja, pessoas com uma exposição solar muito elevada e onde este tipo de neoplasia é sempre muito frequente". Os investigadores detectaram ainda alguns casos de lesões da tiróide. A maioria dos doentes, acrescentou Teixeira Gomes, acredita ter sido infectada por gatos ou então em escolas, instituições de caridade ou no próprio Hospital Joaquim Urbano, onde eram internados por difteria..À procura dos genes.Este projecto de investigação tem uma componente inovadora no que diz respeito às relações entre as radiações por tinha e o aparecimento de cancro. Para além da vertente clínica, de avaliação dos doentes, há também uma parte de estudo genético. Que poderá responder, por exemplo, à questão do porquê só uma pequena parte ser afectada pelas radiações e desenvolver cancro. A susceptibilidade genética é assim um dos aspectos a ser estudado no Ipatimup, com a detecção de genes envolvidos..Mas há mais: tendo em conta a experiência da instituição do Porto no estudo das crianças afectadas pelo acidente nuclear de Chernobyl - tendo, por isso, desenvolvido cancro da tiróide -, os investigadores querem perceber se os mecanismos genéticos das radiações são, em ambos os casos, os mesmos. O primeiro passo é o DNA mitocondrial (parte da célula que regula a função respiratória e energética), normalmente um alvo prefe-rencial das radiações. O interesse está no facto de avaliar o processo, tendo em conta que as diferenças entre Chernobyl e as radiações contra a tinha são radicalmente diferentes, em dimensão (as doses de exposição do acidente nuclear foram imensamente maiores) e natureza (na tinha eram raios X e não à base de iodo).