Rainhas e galinhas

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Ontem, depois de uma tarde cheia na 18.ª Bienal do Livro Rio, e quando jantava em casa da grande Malú Valadares, escritora e encenadora paulista radicada no Rio, na sua já mítica varanda sobre a mágica baía de Guanabara, um grupo bem divertido da nova geração das letras e das artes dos três lados do Atlântico, partilhando os seus mais recentes sucessos e insucessos, senti um toque leve no ombro e uma voz doce que me perguntou se. Não perguntou nada, porque a frase anterior é falsa. Falsa, não, não é bem falsa, é só que ainda não aconteceu. É aspiracional. E foi também, já agora, a forma de adjetivar uma tarde de cheia, uma escritora de grande, uma varanda de mítica, uma baía de mágica e uma voz de doce, sem sentir vergonha.

Espero ser perdoado por ter cometido ficção. Tenho ideias a mais para este texto e calma a menos para decidir qual delas seguir até ao fim. É que passei uma semana no Congresso da International Fiscal Association, rodeado de taxistas internacionais. Taxistas são tipo baristas, uns servem cafés, outros tratam de impostos, mas têm um nome que parece que fazem coisas mais sofisticadas do que fazem. É a minha fauna, eu sei, mas há sempre a galinha da vizinha, as Bienais do Livro, onde todos dizem coisas inteligentes e profundas, onde todos são bonitos, divertidos, onde não estão agarrados ao telemóvel a responder aos clientes. Mas é a vida que escolheste e estou a ser injusto, conheci gente bem interessante, mas é sempre negar, negar sempre, que a família e colegas leem estes textos e têm de ver a perspetiva sacrificial destes dias no Rio, senão está tudo escangalhado.

Eu até tinha uma ideia de um artigo sobre as autárquicas, coisa séria. Ia propor uma alteração à Lei Orgânica n.º 1/2001, a lei eleitoral dos órgãos das autarquias locais. Toda a gente bota faladura sobre os sistemas eleitorais, desde académicos até pessoas que entendem do assunto, e esta seria a minha oportunidade. Ia propor um sistema que me permitisse votar não apenas em Lisboa e em Marvila, mas também na Covilhã, no Lumiar e na Lourinhã. É que tenho três bons amigos naqueles sítios e custa-me não votar neles. Custa-me não votar no Adolfo para presidente da Câmara da Covilhã, no Nuno para presidente da Assembleia Municipal da Lourinhã, e na Patrocínia para número dois da Junta do Lumiar. Custa-me, porque sei que são os melhores, que farão sempre melhor, e que os seus munícipes e fregueses ficarão melhor. Mas depois disseram-me para não escrever o texto, vais dar-te ao ridículo, as pessoas não vão perceber onde começa e acaba a ironia, os próprios podem não gostar, e não te esqueças de que já tiveste responsabilidades na área das autarquias, e ainda por cima dois deles nem sequer são do PSD. Tudo motivos para continuar com o texto - perder o amigo, mas não perder a piada, como dizem aqui - mas a piada também não era muita, e não dava para gastar os caracteres todos.

Depois tive uma ideia que parecia melhor, que me surgiu a propósito de um problema que me está a acontecer no Brasil. Juntando várias coisas, o facto de nunca ter vindo ao Brasil, uma fraca exposição a telenovelas nos anos formativos do cérebro, não compensada pela sobre-exposição a música brasileira, e uma dificuldade na produção de ritmos (que se devia chamar arritmia, mas a internet diz que é uma forma de amusia), faz que muitas das vezes em que tento o sotaque brasileiro me respondam em espanhol. E depois fico naquela hesitação entre voltar ao português de Portugal, tentar o meu melhor português do Brasil, ou então entrar pelo espanhol adentro como se tivesse nascido em Burgos, ¡joder! E isto era a propósito de uma candidata do PS à Junta de São Francisco de Assis, na Covilhã, ter insultado o candidato do CDS porque este, emigrante retornado da Venezuela, pronúncia espanholada, e até o terá imitado num debate, numa prestação inacreditável. É que agora também queria falar da coisa e votar no senhor.

A outra ideia era a propósito do facto de enquanto aqui no Brasil o Ronaldo ter ultrapassado o Pelé como melhor marcador das seleções. Mas não era para falar bem disso, era de outra coisa, de outro Ronaldo. Do Ronaldo que já foi o Ronaldo, mas agora tem de ser o Ronaldo Fenómeno para se distinguir do Ronaldo Ronaldo. Penso muito no significado de alguém ter sido o melhor do mundo, e depois vir outro que é ainda melhor e tem o mesmo nome. Tipo aparece agora um escritor brasileiro que conquista o mundo e se chama Saramago Rubens, daqui por poucos anos que Saramago é o Saramago? É que foi isso que aconteceu ao Ronaldo (Nazário), que começou por ser Ronaldinho porque era novo e havia na mesma equipa o Ronald(ã)o, e depois veio um Gaúcho que lhe roubou o diminutivo, e um português que lhe roubou o nome. É galo maior do que a galinha da vizinha. Ainda por cima, um nome que nem existe em Portugal e que não é por causa dele, mas de um presidente americano. E esta ideia era boa, porque dava para ligar aos impostos, que Ronaldo o Cristiano não paga com a ajuda de taxistas, e que Ronald Reagan reduziu sem muita vergonha.

E depois havia ainda que falar na Leda, taxista de quatro rodas, com uma Senhora da Aparecida e uma Senhora de Fátima no tablier (a Aparecida é que manda, segundo Leda). E algumas linhas ainda para o meu recente fetiche Marília Mendonça, uma cantora sertaneja que tem o título de Rainha da Sofrência, obcecada com as partes complexas da vida, em temas como Amante Não Tem Lar ou Como Faz com Ela. Marília nasceu em Cristianópolis (que ligava ao Cristiano), e fazia a ponte para a nossa Rainha da Sofrência, a Ágata. É que eu também queria poder votar na Ágata em Castanheira de Pera, depois do que gozaram com ela. Agora faz-se tarde, e a noite continua na casa da grande Malú Valadares. Me aguarde, Malú. Um dia. Um dia será a noite.

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