Antes de vencer as eleições legislativas de 30 de janeiro deste ano conhecia-se o pensamento de António Costa sobre as maiorias absolutas: "Não tenho dúvida nenhuma de que os portugueses não gostam de maiorias absolutas e têm má memória delas, quer as do PSD quer a do PS.".A frase, dita numa entrevista à TVI em agosto de 2019, suscitou na altura reações de desagrado dos seus dois alvos inscritos: Cavaco Silva, protagonista de duas maiorias absolutas à frente do PSD (1987 e 1991) e José Sócrates (líder do PS na maioria de 2005). Por larga margem, a redação do DN escolheu esta semana António Costa como figura nacional do ano e a maioria absoluta do PS como acontecimento nacional do ano..Citaçãocitacao"Uma maioria absoluta não é o poder absoluto, não é governar sozinho. [...] Um dos grandes desafios que terei nesta legislatura é reconciliar os portugueses com a ideia de maioria absoluta e que a estabilidade é boa para a democracia e não uma ameaça à democracia.".Foi portanto com alguma surpresa - sua e de todos os observadores - que na noite de 30 de janeiro deste ano, ao saber que tinha vencido as eleições com 41,4 por cento dos votos, obtendo uma maioria absoluta de 120 deputados no Parlamento, que o líder socialista teve de dar a volta ao seu antigo discurso anti maiorias absolutas. A teoria passou então a ser a seguinte: "Uma maioria absoluta não é o poder absoluto, não é governar sozinho. [...] Um dos grandes desafios que terei nesta legislatura é reconciliar os portugueses com a ideia de maioria absoluta e que a estabilidade é boa para a democracia e não uma ameaça à democracia.".Foi devido ao falhanço clamoroso das sondagens na campanha eleitoral de janeiro passado que a maioria absoluta do PS surgiu como uma enorme surpresa. Nenhum estudo eleitoral a tinha previsto e na verdade em muitos o que se observou foi a previsão de que PS e PSD estariam taco-a-taco, podendo até os sociais-democratas, então liderados por Rui Rio, sonhar com uma vitória. Só que não..O PSD ficou, na verdade, com um resultado igual ao das legislativas de 2019 e dois deputados a menos (passou de 79 para 77). À direita, o Chega e a Iniciativa Liberal cresceram exponencialmente. Ambos tinham um deputado cada (André Ventura e João Cotrim Figueiredo), passando o Chega para 12 e a IL para oito. Cresceram ambos à custa de uma diminuição da abstenção mas também do CDS-PP, o qual, liderado por Francisco Rodrigues dos Santos ("Chicão" para os amigos e apoiantes) e a braços com brutais divisões internas, desapareceu do panorama parlamentar (onde tinha presença desde as primeiras eleições pós 25 de Abril, em 1976)..À esquerda, tirando o PS (que cresceu de 108 deputados para 120) e o Livre (que tinha um eleito e assim continuou), foi a derrocada. A CDU (coligação com o PEV liderada pelo PCP) passou de 12 deputados para seis (e o PEV deixou de ter representação); no Bloco de Esquerda, o desastre foi ainda maior: 19 eleitos passaram a cinco; no PAN também foi mau: quatro eleitos encolhidos a um, a porta-voz do partido, Inês Sousa Real. Em suma: o PS venceu, passando a ter maioria absoluta, mas a esquerda, no cômputo geral, encolheu de 140 para 132 deputados (e nestas contas não entra o PAN, que não gosta de ser considerado de esquerda ou de direita)..Já a direita cresceu, de 86 deputados para 97, com esse crescimento todo concentrado no Chega e na Iniciativa Liberal..Assim, os resultados mostraram que houve voto útil no PS à esquerda, concentrando-se nos socialistas votos que tinham sido antes do PCP ou do BE. Mas o mesmo já não aconteceu à direita, em processo acelerado de reconfiguração, com novas forças a crescer, uma a desaparecer (o CDS) e o PSD a manter-se na mesma. Aparentemente, e dado que as eleições legislativas nasceram de um chumbo orçamental (do OE2022) e da consequente crise política (António Costa demitiu-se de primeiro-ministro), as eleições passaram a ser um plebiscito à ideia de estabilidade..E Costa foi o mais capaz de a garantir, enquanto à direita Rui Rio tergiversou sobre hipóteses de entendimentos com o Chega, nunca sendo claro sobre se os recusava em absoluto ou os aceitava em absoluto. O "papão" de uma aliança de direita que colocaria o Chega na área do poder, firmemente agitado por Costa, fez com que muitos votos no PCP ou no BE transitassem para o PS, único partido à esquerda capaz de garantir estabilidade (dado, além do mais, que entretanto a "geringonça" tinha deixado de ser uma solução). Isto deu ao PS a sua segunda maioria absoluta. O resultado obtido pelos socialistas foi a primeira grande surpresa política nacional do ano. A segunda viria depois..Apesar de ancorado numa maioria absoluta, o governo de António Costa tem mostrado uma instabilidade interna nunca vista nos seus dois governos anteriores (de 2015 a 2019 e de 2019 a 2022). O chefe do Governo chama-lhe "casos e casinhos" e afirma publicamente que só interessam à "bolha político-mediática"..Porém, na verdade, não foi a "bolha político-mediática" que inventou o "caso" de um ministro, Pedro Nuno Santos, das Infraestruturas e Habitação, que, no final de junho passado, à revelia do chefe do Governo, resolveu divulgar uma nova solução para um novo aeroporto na área metropolitana de Lisboa (Montijo como solução provisória até à construção de uma solução definitiva em Alcochete)..Desautorizado, o primeiro-ministro obrigou o ministro a revogar o despacho que continha a dita solução. E este a seguir prestou-se a um bizarro mea culpa em público onde resumiu tudo a "erros de comunicação" com o primeiro-ministro. Manteve-se "obviamente" (expressão sua) em funções, o que muitos analistas viram como uma forma de Costa não o deixar à solta no PS, inteiramente dedicado à sua campanha interna para um dia ser o secretário-geral que se segue..Demite-se secretário de Estado adjunto de Costa >>DV.Casos como o de Pedro Nuno Santos parecem ter resultado de um problema de ausência de coordenação na cúpula do Governo. No atual XXIII Governo Constitucional, a nº 2 passou a ser Mariana Vieira da Silva (ministra da Presidência), que substituiu Augusto Santos Silva, agora presidente do Parlamento (e putativo candidato presidencial do PS em 2026). Costa, apesar de já avisado pelo Presidente da República de que haverá crise política caso um dia queira transitar para um cargo europeu, não deixa de alimentar uma intensa agenda internacional. E aparentemente, na sua ausência, não há quem mande..Tentando resolver o problema, Costa reforçou a sua equipa de comunicação. E depois recrutou na presidência da Câmara de Caminha um secretário de Estado adjunto, Miguel Alves - escolha que se revelaria um portentoso tiro nos pés. Semanas depois de tomar posse, Miguel Alves foi forçado a demitir-se, quando confirmou que estava acusado numa investigação judicial a crimes financeiros autárquicos..Para a história da instabilidade governativa fica ainda o caso da demissão numa madrugada de agosto da ministra da Saúde que geriu toda a pandemia, Marta Temido, queixando-se de ter deixado de "ter condições para se manter no cargo". E ainda, há poucas semanas, a substituição de dois secretários de Estado que tinham desautorizado publicamente o respetivo ministro, António Costa Silva (Economia)..António Costa, como sempre desde 2020, nada mais faz senão gerir crises. Primeiro teve a da pandemia e agora, desde fevereiro, a da guerra na Ucrânia, com as suas consequências na inflação e numa brutal perda do poder de compra. No SNS sucedem-se as situações que às vezes quase parecem indiciar um cenário de pré-colapso. No ensino básico há sinais preocupantes de um problema crescente de falta de professores. Se António Costa será o arquiteto da reconstrução é o que falta saber..joao.p.henriques@dn.pt