Quando Saramago falou dos avós ao mundo e aos reis da Suécia

Há exatamente 25 anos, em Estocolmo, José Saramago recebeu o Prémio Nobel da Literatura, numa cerimónia solene vista em todo o mundo. Uma efeméride a assinalar até porque, até à data, mais nenhum autor de língua portuguesa teve tal distinção.
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Na tarde de 10 de dezembro de 1998, José Saramago recebeu o Nobel da Literatura das mãos do Rei da Suécia, Carlos Gustavo, mas as primeiras palavras do seu discurso foram dirigidas a alguém cuja vida andara muito longe de palácios e protocolos de Corte: "O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher." E, em seguida, evocou o duro quotidiano do avô materno, Jerónimo Melrinho, e sua mulher, Josefa Caixinha, na Azinhaga do Ribatejo, mas também as lições que deles recebera, afinal um dos contributos que, ao longo da sua vida tinham conduzido, àquela mesma tarde de consagração.

Primeiro (e até agora único) Nobel da Literatura de Língua Portuguesa, Saramago, à época, vivia já com sua mulher, a jornalista Pilar Del Rio, na ilha espanhola de Lanzarote. Foi aí que, poucos dias após o anúncio do prémio, recebeu o DN e concedeu uma entrevista à jornalista Maria João Caetano (publicada a 12/10/98) na qual se referia à sua relação com os dois países ibéricos: Aquele em que nascera, crescera e se tornara escritor e o outro, em que fixara residência já entrado na casa dos 70 anos: "O que há da parte dos espanhóis não é que eles queiram apropriar-se de mim, que isso ninguém o poderá fazer. Eu sou de onde sou. Sou de onde nasci, sou da terra que me criou, sou da língua que falo, sou da História que o meu país tem , sou das qualidades e dos defeitos que nós temos, sou dos sonhos e das ilusões que são nossos, ou foram ou que vão ser. O que há na relação de Espanha comigo é uma grande generosidade. Eles receberam-me como se eu fosse um deles."

Antecipando que a sua vida, e muito menos a sua personalidade, não seriam alteradas pelo Prémio, Saramago dizia também, na mesma entrevista, que a sua responsabilidade cívica, sim, aumentaria bastante: "O prémio torna-se mais visível e as coisas que eu digo são mais audíveis. Como nunca fugi às responsabilidades que tive até hoje, espero não fugir às que vier a ter no futuro."

No périplo que, ainda em outubro de 1998, fez pelo país (e que o levou, por exemplo, ao Porto para participar na VIII Cimeira ibero-americana, onde, entre outros, esteve Fidel de Castro), José Saramago visitou a redação do DN, de que fora diretor adjunto entre abril e novembro de 1975, com Luís de Barros como diretor, num período tão turbulento na vida do jornal como do país. Polémicas velhas, de 1975, à parte, Saramago voltaria a colaborar com o jornal em 2009, com a publicação das crónicas O Caderno de Saramago. Afinal, o DN é o único jornal de língua portuguesa que teve um Nobel na sua direção.

Mas não foi o Nobel que internacionalizou Saramago. Recorde-se, no entanto, que à data do prémio, ele era já o autor português contemporâneo mais traduzido, com obras publicadas em dezenas de países, da América do Norte à China. Do mesmo modo, recebera vários prémios internacionais, doutoramentos honoris causa pelas Universidades de Turim (Itália), Manchester (Inglaterra), Sevilha, Toledo e Castilla La Mancha (Espanha) e graus honoríficos como o de Comendador da Ordem de Santiago de Espada e o de Chevalier de l"Ordre des Arts et des Lettres (atribuído pelo governo francês).

Em Portugal, as edições sucediam-se a uma velocidade invulgar no nosso mercado editorial e as solicitações para tradução não se faziam esperar. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, foi traduzido para albanês, alemão, bengali, catalão, checo, mandarim, coreano, croata, dinamarquês, esloveno, espanhol, finlandês, francês, grego, hebraico, holandês, húngaro, inglês, italiano, japonês...

A 20 de maio de 1990, estreara no Teatro alla Scala de Milão, a ópera Blimunda, composta por Azio Corghi, com encenação de Jerôme Savary, a partir de Memorial do Convento.

Mas a maior reviravolta da sua vida (pelo menos, até ao Nobel) ocorrera em finais de 1991, com a publicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Em menos de um mês, o romance chega aos 50 mil exemplares vendidos em Portugal, número impressionante para um país em que a leitura não é, nem nunca foi, um hábito prioritário. Um sucesso que só reforçaria a sanha dos membros mais conservadores da sociedade, consubstanciados no então subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, que impediu a inclusão da obra numa lista de livros portugueses candidatos ao Prémio Literário Europeu desse ano. Irritado, Saramago e a sua mulher espanhola, Pilar del Rio, abandonam o país e constroem uma nova vida na Ilha de Lanzarote, no Arquipélago das Canárias. Aí veio a falecer, aos 87 anos, a 18 de junho de 2010.

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