Uma série que avisa, no início de cada episódio, ser baseada em "verdades, mentiras e má memória", e cuja primeira personagem a aparecer no ecrã faz perguntas como "Precisamos do Estado? Precisamos dos políticos?", elogiando a desobediência a qualquer forma de autoridade, pode indiciar uma farsa vazia. É legítimo ter essa primeira impressão de Power Play, que ainda se reforça por uma ligeira toada punk, enquanto surgem as legendas gráficas (tipo banda desenhada) que identificam os políticos, conforme vão entrando na narrativa dos acontecimentos. Mas não nos precipitemos: há matéria para além do estilo. Já agora, que acontecimentos? A crise do Partido Trabalhista norueguês, que na década de 1970 começou a perder eleitores face ao crescimento dos partidos de direita, encontrando-se numa situação embaraçosa que a massa cinzenta masculina não se mostrou apta a solucionar, tão preocupada que estava com questiúnculas internas de poder..Concebidos por Johan Fasting, os seis episódios que chegam agora à plataforma Filmin, depois de Power Play ter sido premiada como Melhor Série em Cannes, expõem esse mesmo clima de desordem que fez sobressair a presença de uma jovem Gro Harlem Brundtland (n. 1939). Alguém que estudou em Harvard, que, enquanto ativista, defendia o aborto como decisão exclusiva da mulher e - muito importante - que não apanhava ressacas. Quando ela aparece na série, integrando uma comissão abortista, há todo um tom prático que fura a atmosfera levemente caótica..Em modo de sátira política, Power Play conta-nos como Brundtland (interpretada por Kathrine Thorborg Johansen), a médica feita ministra do Ambiente em 1974, então alheia às táticas de liderança, foi aprendendo a mover-se nos ditos jogos de poder, à medida que o Governo desmoronava à sua volta e ela própria acabava por se tornar a primeira mulher no lugar de primeira-ministra da Noruega, em 1981..Era a última esperança no meio dos destroços da social-democracia trabalhista. E se, dessa vez, ocupou o cargo apenas durante alguns meses, voltaria a ocupá-lo em 1986 e, de novo, em 1990. Brundtland que, recorde-se, veio a ser mais tarde diretora-geral da Organização Mundial da Saúde, entre 1998 e 2003..Focando-se nos anos da sua ascensão política, a série, em jeito de anedota nórdica, explora essencialmente a aselhice dos homens do partido - que não conseguiam ver além das respetivas posições de poder - em contraste com o sentido de compromisso desta mulher, que, em vez do umbigo, se preocupou sempre mais com o bem comum. Há, aliás, uma frase bastante ilustrativa dessa postura perante os dirigentes partidários- "Que fique claro: não participarei nas discussões de elevador e sauna". Claro que Power Play está cheio de conversas, pelo menos, no elevador..Para tornar efetiva a brincadeira, a câmara funciona aqui como testemunha nervosa dos diálogos rápidos, com zooms repentinos que sublinham a confusão de sentimentos dentro de uma sala, ou, noutras circunstâncias, o medo que os membros do partido têm dos jornalistas. Estamos na Oslo dos Anos 70, devidamente captados em 16mm, e se vemos a série totalmente definida pelo seu humor escandinavo, a verdade é que o funcionamento da política não deixa de parecer demasiado próximo dos nossos dias, não apenas ao nível de uma energia humana moderna, mas sobretudo na constatação de uma certa falência da esquerda, que fez com que a história se esteja mais ou menos a repetir com o recrudescimento da direita um pouco por toda a parte..Não é por acaso que os criadores de Power Play têm realçado em entrevistas a relevância atual dos momentos históricos retratados, que, apesar da comédia, se basearam numa séria pesquisa documental, cujas imagens de arquivo são usadas inclusive em algumas cenas..E ainda assim, é o humor que faz brilhar o projeto. A palavra à produtora Camilla Brusdal: "À partida o nosso plano não era fazer uma comédia, mas quando começámos a trabalhar, percebemos que havia algo de divertido em todas aquelas reuniões à porta fechada, de onde saía para a imprensa a informação de que comiam waffles. Achámos que era uma boa maneira de abordar o assunto.".Power Play vem integrar uma linhagem cada vez mais rica de séries que mostram a energia feminina na política. Desde logo, uma das coargumentistas desta produção norueguesa, Kristin Grue, foi a primeira a admitir que o retrato aqui proposto de Gro Harlem Brundtland tem qualquer coisa de uma versão caricata do drama Borgen (2010-2022), a notável série dinamarquesa que segue precisamente a ascensão política de uma mulher com personalidade forte..E o pequeno ecrã está cheio de bons casos semelhantes, desde Veep (2012-2019), também em modo de sátira pela pena de Armando Iannucci, com Julia Louis-Dreyfus a fazer de vice-presidente dos Estados Unidos, ao peso pesado House of Cards (2013-2018), onde Robin Wright, a princípio apenas mulher do protagonista, vai escalando cargos na política americana até se tornar a 47ª Presidente dos EUA! Mas não esqueçamos ainda os casos de The Crown (2016-2023), para todos os efeitos a história do reinado de Isabel II, o mais longevo de sempre; Years and Years (2019), com Emma Thompson no papel de uma ameaça trumpista; e The Good Wife (2009-2016), uma das encarnações mais estupendas da mulher durona, em que Julianna Margulies interpreta uma dona de casa de regresso ao mercado de trabalho, convertendo-se numa advogada que navega a cena política..Mais recentemente, A Diplomata (uma estreia Netflix deste ano), apresentou-se como um dos exemplos mais cristalinos da garra feminina no contexto dos bastidores do poder. Um thriller dramático com Keri Russell como embaixadora americana no Reino Unido, cuja postura de fibra, com especial inteligência para o xadrez político, faz ansiar pela segunda temporada..dnot@dn.pt