Quando é que uma estátua vale o mesmo que uma vida humana?
A resposta à questão que abre este artigo só pode ser uma: nunca. Por mais consensual que esta afirmação possa parecer numa sociedade herdeira da Revolução de Abril, nem todos conseguirão responder de modo tão direto.
No passado dia 11/03/2021, o historiador de arte e professor catedrático Vítor Serrão publicou no Público um manifesto a que chamou de "Carta de direitos e deveres do património histórico-cultural português". O documento teve a sua origem num texto que foi primeiro publicado na sua página de Facebook e depois disseminado por seguidores e admiradores. A facilidade com que este texto circulou entre profissionais e académicos reflete a inquietação central de muitas pessoas que se dedicam ao estudo e gestão do património cultural, que é o risco de destruição a que acreditam estar sujeito o "património português". O texto de Vítor Serrão não só materializou essa inquietação, como ajudou a galvanizar os inquietos. O sobressalto cívico e institucional que decorre deste texto serve de oportunidade para nos debruçarmos sobre a configuração ideológica que estrutura as narrativas hegemónicas sobre o património em Portugal e os perigos que ela suscita.
A proposta de Vítor Serrão fundamenta-se na ideia de que o património cultural português se encontra exposto à "brutalidade dos iconoclasmas" e sujeito a uma "sanha destrutiva". Apesar de o conceito de património não se encontrar definido em nenhuma passagem, o texto dá conta das várias materialidades que o autor julga estarem em risco, nomeadamente monumentos e obras de arte. A indefinição conceptual, a ausência de sujeitos, a abundante adjetivação e a falta de concretização pressupõem que os interlocutores se reconheçam nos termos enunciados. Deste modo, a sensibilidade escolástica a que Vítor Serrão dá voz é o que podemos definir como narrativa hegemónica: para quem partilha dela, tudo é tão óbvio que até a sintaxe se dispensa. Perante uma série de riscos cujos agentes nunca são nomeados, o catedrático defende uma série de "direitos" para os monumentos e obras de arte.
Porém, a existência de direitos pressupõe agência própria em quem deles beneficia, e agência é normalmente considerada como atributo exclusivo de seres humanos. Será que as coisas-monumentos, obras de arte e outros objetos-podem beneficiar de direitos como se fossem pessoas?
A forma como se tem definido o que é o "património" no mundo ocidental é inteiramente distinta. Organizações globais como a UNESCO ou o ICOMOS popularizaram a ideia de que coisas têm valor intrínseco, isto é, se podem pensar como património independentemente do contexto social que lhes dá sentido. Por defeito, os danos que se possam fazer a monumentos e outros bens culturais ferem a humanidade como um todo. Mesmo numa perspetiva como esta, são os interesses de um pretenso sujeito universal e não coisas que estão no centro das discussões sobre património. O direito da comunidade ao património cultural e o dever do estado em protegê-lo, tal como estão refletidos na Constituição da República Portuguesa de 1976, refletem esta tendência.
A crítica ao universalismo eurocêntrico das instituições globais tem levado a um maior recentramento das comunidades nas discussões sobre o património. Com a sua "Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural" de 2001, a UNESCO procurou desacelerar a tendência normativista e homogeneizante sobre o que é a cultura. O chamado "grupo de Friburgo" baseou-se neste documento para elaborar uma declaração sobre direitos culturais em 2007. Nele se assume, de forma explícita e contundente, que se deve respeitar a criação, exercício e reprodução de práticas culturais nos termos definidos por cada comunidade. Para os promotores da "Declaração de Friburgo", é a própria diversidade que se deve entender como património da humanidade.
Porém, a ideia de que coisas-monumentos, obras de arte e outros objetos-são dotados de personalidade não é nova. O antropólogo Alfred Gell, estudioso da arte Malangan da Melanésia, lembrou-nos como os cristãos medievais reconheciam agência própria nas relíquias sagradas. As relíquias são objetos, mas não uns objetos quaisquer. São animados por santos cuja vitalidade decorre dos devotos e da sua fé. Na mesma linha podemos pensar que existe uma vitalidade que flui através de todos os seres vivos e que, em igual medida, anima coisas que conformam a própria vida. A humanidade depende de equilíbrios ecológicos que assegurem o seu bem-estar, e nesse sentido é legítimo pensarmos que as florestas, os rios e as montanhas tenham personalidades próprias e careçam de direitos.
As pessoas que trabalham com o património cultural podem e devem considerar uma perspetiva vitalista no modo como desempenham as suas funções. Entre 2001 e 2003, uma equipa de conservadores-restauradores esteve em Angkor Wat, Camboja, a trabalhar no restauro da estátua conhecida por Ta Reach. A escultura representava originalmente Vixnu, mas foi resinificada como Buda no final do século XII. Trata-se de uma escultura querida pelos muitos peregrinos que acorrem àquele espaço sagrado e pelas comunidades que vivem em seu redor. Os técnicos decidiram proceder a uma consulta junto da comunidade sobre as intenções do projeto, e foram aconselhados a expô-los diretamente a Ta Reach. Foi a própria entidade que, incorporada num membro da comunidade, considerou e validou as metodologias propostas. O que esta experiência nos ensina é que um objeto só se concretiza integralmente no quadro social, e neste caso espiritual, da comunidade que lhe dá sentido. Em que circunstâncias podemos então considerar os direitos das coisas no caso português?
Em sociedades democráticas, o direito corresponde às regras que definem a vida em comum e reflete os valores em que a comunidade se reconhece. É possível que os legisladores entendam personificar coisas juridicamente-nomeadamente monumentos e obras de arte - se a comunidade apontar nessa direção. Isto não será inédito. Embora os animais sejam seres vivos, até há pouco tempo não lhes era reconhecido o direito ao bem-estar e eram, do ponto de vista jurídico, considerados coisas. A comunidade exigiu uma mudança e alterou-se o Código Civil para corresponder a essa sensibilidade. É de prever, e parece-me desejável, que a legislação continue a mudar para que um dia possa também enquadrar direitos para florestas, rios e montanhas, como já acontece, por exemplo, na Nova Zelândia ou na Índia. Em todo o caso, o alargamento da personalidade jurídica a não-humanos vai sempre ao encontro dos interesses das pessoas. Esses interesses redundam na sustentabilidade ecológica, mas também no aprofundamento dos princípios éticos da nossa comunidade. Ou seja, os direitos dos animais garantem a sua dignidade também na medida em que validam o modo como nos vemos enquanto seres cuidadores e empáticos. É por isso que apenas pessoas, e não animais, têm deveres e são legalmente imputáveis por infrações.
Estas transformações recentes na nossa sensibilidade perante a vitalidade da natureza e das coisas seguem a popularização global de perspetivas indígenas e são muito oportunas em sociedades que continuam a indexar a sua prosperidade à extração ilimitada de recursos. Ao contrário de uma narrativa universalista e eurocêntrica, estas perspetivas podem fazer com que entendamos o património de maneira pluriversal, questionando dicotomias que conformam a nossa existência: cultura versus natureza, humanidade versus animais, ciência versus superstição, civilização versus selvajaria. No entanto, será esta a direção que Vítor Serrão pretende incutir nas discussões atuais sobre o património? Será possível que a nossa sociedade esteja hoje mais ameaçada do que nunca, e que necessitemos de personificar monumentos e obras de arte para resolver essas ameaças? Mas que ameaças são essas afinal?
No dia 5 de Abril, a Plataforma pelo Património Cultural (PP-Cult) promoveu um encontro virtual dedicado à "Carta" de Vítor Serrão. Esta plataforma foi criada em 2008 por um conjunto de organizações profissionais, de defesa e de gestão do património cultural em Portugal. O encontro foi liderado por Luís Raposo, presidente do ICOM Europa, e reuniu quase duas dezenas de representantes associativos com o objetivo de escutar uma palestra de Vítor Serrão e reunir contribuições para a referida "Carta". O evento funcionou como uma verdadeira aclamação do documento, já que a discussão consistiu numa lista de adendas, sugestões e intenções feitas exclusivamente pelos convidados. Para além da possibilidade da transformação deste texto num documento internacional ou em lei, houve quem o tivesse comparado à "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", um dos documentos centrais da revolução francesa. As intervenções esclareceram as minhas perguntas sobre os motivos que levaram à organização de um evento deste tipo no atual contexto político e social.
A palestra de Vítor Serrão centrou-se no que considera o grande "cancro" que aflige o património cultural: a iconoclastia, isto é, a destruição de imagens e bens culturais. Tal como no seu artigo no Público, o catedrático de história de arte não se preocupou em contextualizar os atos iconoclásticos a que se refere. Porém, foi prolífico na adjetivação dos mesmos: "barbaridade", "vandalismo", "brutalidade", "fanatismo" ou "esconjuramento" para "afirmar estratégias de tribo". Enquanto adjetivos, estas palavras emergiram em momentos históricos diversos e sempre com a intenção de desvalorizar e esvaziar a agência política de adversários. O seu uso tem sido uma ferramenta discursiva eficaz na desumanização desses mesmos agentes. No passado, serviu para promover projetos coloniais e para legitimar juridicamente a ideia de guerra justa. Enquanto "bárbaros", "vândalos" e "brutos", os opositores suscitam uma atitude repressiva; enquanto agentes de esconjuros e outros rituais, os agentes "tribais" são reduzidos a um estatuto de irracionalidade que convida à ação civilizadora. Entre muitos exemplos, Vítor Serrão elencou a remoção de imagens religiosas das igrejas durante a Reforma protestante no século XVI, a exposição de "arte degenerada" promovida pelos Nazis em 1937, o ataque do Estado Islâmico às ruínas de Palmira em 2015 e o recente restauro amador de um Ecce Homo feito por uma paroquiana espanhola bem-intencionada.
Porém, os exemplos centrais desta lista foram as estátuas de missionários como o padre António Vieira e outras figuras coloniais que têm sido ocasionalmente pichadas em Portugal e um pouco por todo o mundo. As pichagens têm sido realizadas no âmbito de um movimento global que questiona a contínua celebração pública de experiências trágicas cujos legados continuam a causar sofrimento. Este movimento está intimamente ligado ao confronto de problemas prementes como o racismo estrutural, que marca o próprio usufruto das cidades em que estátuas colonialistas continuam a ser exibidas.
A centralidade das estátuas na origem da "Carta dos direitos do património" é confirmada por várias intervenções feitas durante o debate. João Neto, presidente da Associação Portuguesa de Museologia, anunciou a chegada a Portugal do debate sobre monumentos, alegadamente importado de "países anglo-saxónicos". Por seu lado, o antigo presidente da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, Jorge Custódio, alertou para uma "nova fase da história patrimonial" que naturaliza o "vandalismo" e a destruição de bens culturais. Luís Raposo aproveitou para dizer que vivemos no "tempo do camartelo". A conversa acabou por ser conduzida ao padrão dos descobrimentos em Lisboa, com várias meditações sobre a intencionalidade ideológica de quem o idealizou e construiu. Porém, a veemência com que este tema foi discutido parece ser inversamente proporcional à frequência dos casos de pichagem ou destruição de monumentos em Portugal. Até hoje, ninguém demandou seriamente a destruição de monumentos no país, mas tão somente a sua resignificação ou recontextualização.
Surpreendentemente, a inquietação do grupo reunido em torno de Vítor Serrão não se estendeu às mobilizações que a extrema-direita parlamentar e grupos neofascistas têm feito em torno de vários monumentos. Em 5/10/2017, elementos de extrema-direita aglomeraram-se em torno da recém-inaugurada estátua ao padre António Vieira em Lisboa para prevenir a realização de uma manifestação antirracista. A 16/3/2021, o partido CHEGA apresentou no padrão dos descobrimentos um candidato autárquico que defende a reintrodução da pena de morte, entre outras veleidades que envergonhariam qualquer cidadão num país democrático. O catedrático tinha inicialmente proposto que a sua "Carta" fosse também um manifesto contra atitudes iconófilas como estas, mas o problema foi rapidamente ignorado.
A despreocupação relativa ao uso do património por grupos extremistas e violentos que ameaçam a vida em comunidade junta-se à falta de empatia para com as pessoas que reclamam contra a violência simbólica de monumentos colonialistas no espaço público. Adaptando livremente uma máxima de Auguste Comte, o arqueólogo Luís Raposo terminou o debate dizendo que a "humanidade é constituída sobretudo por mortos, e muito mais do que por vivos". Antes desta vertigem necrológica, Soraya Genin meditou sobre a crítica que um padre fez na missa de Páscoa sobre a "assistência à morte" no aborto e na eutanásia. A representante do ICOMOS-Portugal aproveitou assim para estender a necessidade de prestar "assistência à vida" do património. É significativo que ninguém tenha querido debater os problemas que afetam as vidas de quem dá sentido ao património ou que sobre ele trabalha. Apenas o representante do Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia mencionou a extrema precariedade económica e social a que estão sujeitos os trabalhadores do setor, na sua maioria jovens altamente qualificados. O tema não parece ter gerado qualquer interesse. A inquietação dos intervenientes tinha muito pouco que ver com a vida.
O que suscitou a inquietação detrás do evento? Ao insistir na personificação de monumentos, os presentes reagiram à emergência de movimentos sociais anti-racistas e descoloniais que têm vindo a contestar a forma como a esfera pública é dominada por representações que materializam as desigualdades económicas, sociais e raciais do país. Porém, a crítica aos monumentos são detalhes na vasta agenda de quem se manifesta pela justiça económica e social. O assassinato a sangue frio de Bruno Candé por motivos raciais, em 25/7/2020, lembra-nos que há membros da comunidade nacional cujos direitos à vida e à dignidade não parecem estar suficientemente assegurados. Ao escolherem falar do "direito à vida" de monumentos e permitirem a liberdade poética de quem diz que a humanidade pertence aos mortos, os promotores da "Carta dos direitos do património" relativizaram o sofrimento que estátuas colonialistas continuam a perpetuar no espaço público.
Deste modo, o património cuja segurança tanto inquieta Vítor Serrão e seus admiradores não é mais do que um fetiche, isto é, uma realidade material que obscurece as relações de desigualdade a que se acostumaram. Nesta perspetiva, não se pretende que as coisas tenham direitos porque através delas flui a vitalidade de uma sociedade mais sustentável, inclusiva e democrática. Pelo contrário, a "Carta" é proposta porque cristaliza uma determinada visão do espaço público e do património cultural que se julga estar em risco. As estátuas e outros monumentos estão em perigo na medida em que os seus protetores se sentem em perigo. A descontextualização histórica das pichagens e outras intervenções em estátuas colonialistas e a desqualificação do seu caráter político, tornando-as em atos "vandálicos", é um ato de exercício de poder hegemónico, mas um poder que se sente ameaçado pela emergência de novos agentes sociais que inexoravelmente transformarão o país.
Não parece ter ocorrido a nenhum dos promotores da "Carta" que as intervenções em monumentos a que chamam "iconoclásticas" sejam elas próprias atos de resignificação, de desbloqueio da vitalidade que nelas importa fluir. Como nos conta a poeta são-tomense Conceição Lima, no seu país "as estátuas desdenham alturas/ praticam na praça/ devassam estradas/ têm mãos pensativas/ e barro nas pontas dos pés". O património existe apenas na medida em que existe uma comunidade que lhe dá sentido no presente, com os olhos postos no futuro. Se não soubermos cuidar das vidas e do bem-estar dos membros da nossa diversa comunidade, o mais certo é que Portugal se transforme numa paisagem morta cheia de estátuas frias.
Arqueólogo. Durham University (Reino Unido) e UNIARQ, Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa