Quando Cunhal mudava as fraldas à filha

<p>Álvaro Cunhal, Retrato Pessoal e Íntimo (ed. Esfera dos Livros), do jornalista Adelino Cunha, editor de política do JN, é a biografia que faltava do líder histórico do Partido Comunista. Um livro que vai à procura do homem por detrás do mito. Estes excertos em pré-publicação mostram uma das facetas menos conhecidas de Cunhal: a sua relação com a única filha, Ana.</p> <p> </p>
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Álvaro Cunhal e Isaura Moreira apaixonaram-se pouco tempo depois de começarem a trabalhar juntos e nesse mesmo ano tiveram uma filha. A única da vida do líder do PCP. Ana Cunhal nasceu em Dezembro de 1960 numa clínica em Lisboa, na Alameda D. Afonso Henriques, perto do antigo cinema Império. O parto foi realizado por um médico comunista que exercia a sua actividade profissional na legalidade. Aceitou o pedido de Cunhal para receber Isaura em sua casa e realizou o parto na clínica onde trabalhava. Poucos dias após o nascimento, Isaura foi para casa do médico para um breve período de recobro. É nessa altura que Cunhal vê a filha pela primeira vez.

A relação entre Cunhal e Isaura terminaria cinco anos mais tarde quando viviam em Moscovo. O líder comunista tentou proteger a filha da inevitável perturbação provocada pela ruptura emocional e pela consequente separação física do casal, mas a relação com Isaura Moreira evoluiu para uma amizade que se manteve até ao fim.
Cunhal entregou-se à educação da filha como um «pai galinha». Tentou estar presente quase diariamente em Moscovo na educação de Ana e, mais tarde, efectuou frequentes visitas a Bucareste para manter o contacto familiar.

A antiga companheira admite que Cunhal até preferisse ter um filho homem, mas elogia sem reservas a sua dedicação à filha.
«Deu-lhe sempre muita atenção», garante Isaura Moreira. «Fazia tudo para que ela fosse feliz.» (...)

Torna-se pai e chefe de família, mas por um breve período de tempo. Cunhal continua a ser um revolucionário leninista e preserva as dificuldades que o acompanharam ao longo da vida para acertar o passo com a herança estalinista. Portugal continua amordaçado pela ditadura e o mundo submete-se à tensão entre os blocos norte-americano e soviético, mas os dias de Cunhal no Leste são de liberdade e irá conseguir assumir quase na plenitude a relação com a filha.

Quando estava quase a completar 5 anos, Ana teve de ir viver com a mãe para Bucareste devido à separação dos pais.
Nos anos passados em Moscovo, Cunhal gostava particularmente das brincadeiras com «Anita» e «Guidinha», isto é, a sua filha e a filha de Margarida Tengarrinha e do combatente José Dias Coelho, assassinado pela PIDE. A infância partilhada entre as duas meninas começa em Moscovo, continuará em Bucareste e manteve-se nos anos seguintes. «Sempre foram muito amigas», corroboram em uníssono as mães, Isaura Moreira e Margarida Tengarrinha. (...)

Em família
Os invernos em Moscovo eram especialmente apreciados por Cunhal. Os moscovitas usavam as ruas geladas que ligam os Montes Pardal ao Parque Gorky para andar de patins e Isaura Moreira aproveitava essas alturas para levar a filha a deslizar pelo gelo com dois pequenos esquis. «Eram os nossos desportos de Inverno», conta.

Cunhal acompanhava com frequência a companheira e a filha e gostava de tirar fotografias a preto e branco que ele próprio revelava em casa. «Tínhamos uma das casa de banho transformada num pequeno estúdio de revelação», conta Isaura Moreira. Cunhal também gostava de aproveitar os cinematográficos nevões moscovitas para levar a companheira e a filha a verem saltos de esqui nas rampas colocadas nos montes mais íngremes diante da Universidade Lomonosov. (...)

Ana Cunhal teve problemas de saúde neste período da sua infância em Moscovo. Cunhal e Isaura tinham dificuldades para a alimentar e chegaram a ver-se forçados a interná-la num hospital de Moscovo. O pai insistia para que comesse e tentava distraí-la com pequenas brincadeiras e jogos. «A nossa filha alimentava-se muito mal e ele fazia desenhos para a distrair e aproveitava para lhe pôr a comida na boca», recorda Isaura. Ana chega a passar alguns dias recusando as duas principais refeições. O pai tentava tudo para a convencer a alimentar-se. «Era muito paciente e dedicado.»

Nesta primeira fase do exílio com o seu núcleo familiar, Cunhal deixa de ser apenas o líder de um partido revolucionário e clandestino para se assumir como pai e companheiro. É a primeira vez que tal sucede na sua vida de revolucionário.
Ajudava a limpar as fraldas de pano e cozinhava com alguma frequência. «Fazia lindamente mioleira com ovos mexidos e convidava-me para ir lá a casa almoçar com eles», refere Margarida Tengarrinha.

«O Álvaro trabalhava muito e ajudava nas tarefas de casa para se libertar dessa intensa actividade intelectual», continua Isaura. A sala de jantar foi transformada em escritório de trabalho. Sobravam dois quartos, uma sala de estar, duas casa de banho, uma delas transformada num pequeno estúdio de revelação de fotografias, e a cozinha onde Cunhal dedicava esporadicamente algum do seu tempo.

«Ele cozinhava bem e chegou a ensinar-me a fazer algumas coisas», conta Isaura Moreira. Doces e algumas sopas, por exemplo. Cunhal tomava também a iniciativa de ajudar a companheira na gestão doméstica da casa e fazia compras na loja de lacticínios perto de casa. Comprava leite para a companheira e para a filha e kefir para si. Uma espécie de iogurte típico do Cáucaso, mas com um processo de fermentação diferente e de maior facilidade digestiva por ser processado por um elevado número de microrganismos. O kefir ajudava Cunhal a minimizar os delicados problemas digestivos que levara das prisões portuguesas e a superar a intolerância à lactose, eliminando os microrganismos patogénicos na flora intestinal. (...)

Aos 3 anos, Ana Cunhal começou a frequentar um dos jardins-de-infância de Moscovo aberto aos familiares dos dirigentes partidários. «Ela gostava muito e no fim-de-semana perguntava constantemente quando é que ia para a escola outra vez», refere Isaura Moreira. Frequentava a creche durante os dias úteis e passava os fins-de-semana com os pais em casa. Cunhal tentou ser um pai presente. «Quando ela era pequenita, houve uma altura em que lhe podia oferecer brinquedos. Oferecia-lhe por exemplo umas bonecas, mas a boneca de que ela gostava mais era uma mais velhinha, que já estava até esfarrapada e eu levava uma mais bonita e ela não ligava grande coisa», confessa Cunhal, para logo concluir: «Creio que abundância de brinquedos pode estragar a criatividade de uma criança.»
Em 1965, a relação conjugal entre Cunhal e Isaura termina definitivamente. (...)

Filha rebelde
Ana Cunhal viveu na Roménia com a mãe após a separação dos pais e só reencontrou Cunhal em liberdade em 1974. Em Julho, Cunhal deslocou-se ao Aeroporto de Lisboa para a receber juntamente com os filhos de outros funcionários do PCP que tinham vivido na União Soviética. A reportagem do Diário de Notícias dá conta das «lágrimas, choros e cravos vermelhos» que marcaram a chegada de onze jovens entre os 11 e os 19 anos. (...)

Entre as crianças e adolescentes anónimos que chegaram a Lisboa estava Ana Cunhal. A notícia da sua presença no grupo manteve-se guardada entre um núcleo muito restrito de pessoas. Cunhal tinha solicitado a Mário Soares, na qualidade de ministro dos Negócios Estrangeiros, que facilitasse o desembarque das crianças dispensando os formalismos alfandegários, mas omitiu a presença da filha.

Almeida Santos ouviu uma posterior conversa no Conselho de Ministros sobre esse silêncio e interpelou directamente o líder comunista. Cunhal respondeu que se tratava da sua vida pessoal e que não a pretendia misturar com a dimensão do seu cargo político. Preferiu a discrição e receber o grupo mantendo a filha resguardada da exposição mediática num momento que era apenas seu e de Ana. (...)

As fotografias da chegada dos «filhos da clandestinidade» à Portela captaram um abraço de Cunhal a uma menina loura. Os sorrisos afectuosos denunciam a cumplicidade de um pai afectuoso, mas a ternura passou despercebida no meio da emoção colectiva. Cunhal conteve a manifestação exterior dos seus sentimentos no reencontro com a Ana e Isaura Moreira só anos mais tarde reconheceu a filha na Portela abraçada ao pai. (...)

Ana Cunhal tinha 14 anos quando regressou a Portugal, de onde tinha saído como uma bebé clandestina. Recomeçou os estudos no Liceu Camões e tentou integrar-se numa turma frequentada por outras crianças e adolescentes vindos da União Soviética e dos outros países do Leste Europeu.

As dificuldades de adaptação e o «peso» da filiação paternal levaram-na mais tarde a abandonar Portugal e a estabelecer-se no estrangeiro. «Os outros alunos tinham ouvido dizer que eu era filha de Álvaro Cunhal mas, como não tinham a certeza, não hesitavam em vir perguntar-me. Todos os dias, várias vezes por dia. A obsessão era tal que eu mentia-lhes só para me deixarem em paz. Detestava ser um ponto de curiosidade só por ter um pai conhecido.» (...)

Ana mudou-se depois para uma escola na Damaia, mas teve dificuldades para se adaptar à vida em Portugal depois da infância na União Soviética e da pré-adolescência na Roménia. A pressão social causada pela filiação com o líder comunista e os novos métodos de ensino tornaram-se obstáculos. Abandonou rapidamente a militância na União de Estudantes Comunistas devido a um «sermão» ensaiado pela líder da estrutura exigindo-lhe responsabilidades acrescidas como filha de Cunhal. O golpe foi fatal e virou as costas à política para sempre indignada com o «fanatismo». (...)

Avô babado
Durante um período considerável de tempo, Cunhal viveu numa casa situada em Rio de Mouro. (...) Cunhal pendurou nas paredes quadros pintados pelo pai e vários desenhos da filha e colocou fotografias dos familiares, algumas delas tiradas e reveladas por si próprio a preto e branco. Tal como durante o exílio em Moscovo, reservou uma parte da casa para funcionar como laboratório fotográfico e ensinou a Ana Cunhal algumas das técnicas que desenvolveu ao longo dos anos.

Ana Cunhal começou a passar com frequência fins-de-semana com o pai (...). Quando Cunhal podia «andar à solta», começavam por se encontrar na sede do PCP e partiam juntos para passearem na praia do Guincho ou na praia das Maçãs.
Foi nesta praia de Sintra que Cunhal deixou em 1960 a companheira grávida da filha e a sua irmã à espera que Octávio Pato as levasse para um ponto de apoio seguro.

«Desabafei muito com ele, que sempre foi um bom ouvinte.» Era o próprio Cunhal quem guiava o carro quando iam passear sozinhos.
Ana Cunhal decidiu mais tarde ir viver para o estrangeiro. Primeiro na Bélgica, depois nos Estados Unidos, mas visitava Portugal para reencontrar o pai e para que os filhos estivessem com a família. Álvaro Cunhal cozinhava petiscos nessas alturas para o grupo e a política tornava-se num lugar distante que nunca surgia nas conversas sobre os pequenos prazeres da vida.

Dedicava uma especial atenção aos netos para aproveitar ao máximo o pouco tempo que podiam partilhar. Tinham rotinas simples como as refeições por si cozinhadas em casa, lanches ocasionais num centro comercial e pipocas durante os filmes a que assistiam juntos. Ana registava o carinho e o orgulho com que o pai tratava os seus filhos e começava a sentir os prejuízos emocionais provocados pela distância física.

A decisão de viver na Bélgica não tinha constituído um problema nesse sentido para Ana por estar habituada desde criança e por sentir o amor do pai em permanência, mas admite que Cunhal tenha sentido bastante o afastamento. «Sentiu muito a nossa falta e tinha sempre muitas saudades de nós.»
Num raro momento de informalidade durante uma entrevista televisiva, Cunhal tirou espontaneamente a carteira do bolso e mostrou as fotografias dos netos. Mais tarde contou o reencontro com o filho mais velho de Ana quando este já tinha 7 anos.
«Estivemos sozinhos e resolvemos comunicar por desenhos.» O neto desenhou um prato com um hambúrguer, batatas fritas, uma salada de tomate e uma Coca-Cola. (...)

Cunhal emocionou-se com o desenho e acima de tudo com as suas qualidades artísticas. «Ainda por cima com um prato e um copo muito bonitos.» A capacidade de estabelecer uma imediata cumplicidade entre ambos através de arte fascinou Cunhal e cozinhou a refeição pedida pelo neto com um prazer reforçado. (...)
Álvaro Cunhal morreu às 5 horas e 54 minutos do dia 13 de Junho de 2005 (...) O funeral realizou-se no cemitério do Alto de S. João no dia 15 de Junho e foi acompanhado por milhares de pessoas, que fizeram questão de prestar uma última homenagem caminhando ao lado do carro funerário desde o Centro de Trabalho Vitória, na Avenida da Liberdade.

Ana Cunhal diluiu-se entre a multidão, refém da presença maciça da comunicação social que roubava o espaço da intimidade da despedida. «Tudo o que posso dizer é que o sofrimento ainda me come por dentro.»

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