No livro em que a poesia de Manuel António Pina começou, em Abril de 1974, Ainda não É o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma É Apenas Um Pouco Tarde, há um poema com o título «A Poesia Vai Acabar». Nele se diz que os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis, por exemplo observadores de pássaros (enquanto os pássaros não acabarem), certeza suscitada pela entrada numa repartição pública onde um senhor míope atendia devagar ao balcão, o que levou o escritor a perguntar-se: «Que fez algum poeta por este senhor?» Talvez não tenha feito nada de útil, a utilidade não será um dos principais atributos da poesia, mas alguma coisa deve ter feito, visto que aquela não acabou, muito menos a de Manuel António Pina, distinguido esta semana com o Prémio Camões, o mais importante galardão da literatura lusófona..A meia hora que o júri do prémio demorou a decidir-se pelo seu nome e «pela inventividade e originalidade» da sua obra não mudou a vida do escritor. «Como dizia Alexandre O'Neill num poema, ""acaso o nosso destino, tac!, vai mudar?". Não, não muda nada, mas é uma forma de reconhecimento muito generosa. Todos gostamos de ser amados», diz Pina. .De braços abertos e com uma simplicidade quase desconcertante, como sempre nos recebe, Manuel António Pina relativiza, não a importância do Prémio Camões, «que é muita, sobretudo pela qualidade do júri, mais do que pelo valor monetário [cem mil euros], que também é grande (não fazia ideia de quanto era e quando um jornalista me disse até proferi um impropério!)», mas a atenção de que está a ser alvo. «Acho tudo um pouco exagerado, até perguntei a um amigo se com os outros portugueses que receberam o Prémio Camões também foi assim e parece que sim. Eu é que não dei por nada. Agora apercebo-me porque é comigo, a proximidade agiganta as coisas. Mas não imagina, tem-me dado muito trabalho», comenta, divertido. Centenas de telefonemas e mensagens de congratulação, a que faz questão de responder uma por uma, já para não falar nos pedidos de entrevistas para todo o mundo de expressão portuguesa..Fã de Winnie the Pooh.Não é a primeira nem a décima vez que Manuel António Pina, 67 anos, nascido no Sabugal, recebe um prémio, mas este é sem dúvida o mais importante, embora isso não o faça sentir-se muito mais do que grato: «Os prémios não tornam as obras melhores ou piores e apesar de, como já disse, ser uma forma de reconhecimento muito generosa, sou um céptico, tenho sempre dúvidas, e portanto não é por ter recebido este prémio que fico mais confiante.» Não se trata de modéstia. «Até pode ser encarado como arrogância, uma vez que acho que posso fazer melhor. Quem está contente consigo mesmo contenta-se com pouco. Eu penso que podemos sempre exigir mais de nós próprios. A criação implica insatisfação, é como se houvesse uma obra ideal que se pretende alcançar e que as obras concretas não podem atingir. Até Deus, quando viu o que fez, desertou. Pôs uma placa a dizer volto já e nunca mais apareceu.».Com poesia publicada em França (francês e corso), Brasil, Estados Unidos, Espanha (castelhano, galego e catalão), Dinamarca, Alemanha, Holanda, Rússia, Croácia e Bulgária, e ficção e literatura para crianças editados na Dinamarca, Espanha, Itália e Alemanha, o poeta, escritor e cronista licenciou-se em Direito, mas fez do jornalismo profissão, tendo vivido trinta anos da sua vida na redacção do Jornal de Notícias, no Porto, para onde entrou como estagiário e de onde saiu chefe de redacção, não tendo apesar disso cortado o cordão umbilical, já que mantém nas páginas do seu jornal a «servidão diária de emitir opinião». Diz que é um milagre que faz todos os dias, mas adivinha-se que é uma «servidão» sem a qual não passaria bem. .Entre a literatura para crianças, de que gosta muito e por onde começou a sua carreira de escritor, a ficção, o teatro e a poesia, Manuel António Pina não hesita em escolher esta última como o seu território. «Onde sinto maior consanguinidade é na poesia, mas entre todas estas actividades existem canais de ligação muito fortes, até as crónicas são muitas vezes visitadas pela poesia. Tenho boa memória, sei muitos poemas de cor e frequentemente faço associações de ideias nas crónicas e cito versos ou lugares literários. Não é para mostrar erudição, é natural em mim.» É à literatura, ao cinema e à música que Manuel António Pina, grande admirador de Winnie the Pooh, com quem apenas se cruzou já no fim da adolescência, porque na infância os livros não abundavam, vai buscar a matéria da sua escrita. «Escreve-se com as emoções, as sensibilidades, as memórias e eu tenho uma vida pacata, por isso os meus grandes sobressaltos emotivos vêm dos livros, dos filmes, das músicas. Grande parte do meu acervo emocional é literário ou cinematográfico. Somos fundamentalmente memória e dessa memória que sou parte é originária dos livros que li, dos filmes que vi, e tudo isso está na minha escrita.».Quando receber o Prémio Camões, vai dedicá-lo aos amigos e à família, «uma forma muito particular de amizade». «Em dias como os nossos, em que tudo se desmorona, os amigos e a família são a única coisa que resiste, o único castelo onde nos podemos refugiar, a única barreira entre nós e o abismo, e por isso é aos amigos e à família que dedico este prémio».