Prémio literário Oceanos - Siríaco: o "freak" que espantou Darwin
"Esta é a história da improvável amizade entre o jovem Charles Darwin e Siríaco, um velho negro e ex-escravo que sofre de vitiligo." É assim que o romance de Joaquim Arena é apresentado, mas do qual se deve dizer que é a mais corajosa invenção literária que a narrativa entre o real e a ficção permite.
O recente romance de Joaquim Arena (n.1964), Siríaco e Mister Charles, é estruturado em redor de duas personagens ficcionadas, mesmo que ambas tenham existido na realidade. Do protagonista, Siríaco, sabe-se pouco a partir da idade adulta. Do parceiro da aventura, Charles Darwin, ao contrário, só se o conhece bem a partir da idade adulta. Eles "encontram-se" em Cabo Verde, quando o navio Beagle que partiu há poucas semanas de Inglaterra fundeia ao largo da Cidade da Praia e os dois principais "atores" deste livro se destacam pela cor da pele. Siríaco tem o corpo malhado - nem é negro nem branco - devido ao vitiligo e Darwin a pele rosada devido ao sol. É o corpo do anão que causa uma das primeiras surpresas ao explorador que irá explicar ao mundo A Origem das Espécies ao pedir "Deixa-nos olhar para o seu corpo e para a pele, Sr. Siríaco?"
Siríaco não se importa com a solicitação feita pelo estrangeiro, que começa em Cabo Verde a anotar as coisas diferentes e que a Europa desconhecia, se bem que Siríaco já tivesse sido exibido perante várias cortes devido à sua pele dividida entre duas raças, a que se acrescentava a particularidade de ser anão. Não estivera só nessas "apresentações", pois a rainha D. Maria colecionara uma dúzia de indivíduos dos dois sexos de baixa estatura e de cor escura. Siríaco fazia parte dessa pequena corte dentro de uma corte maior, que seguiam a monarca para onde ela fosse e eram vistos por quem estivesse perto. Tão diferentes e vítimas de curiosidade que foram pintados por José Conrado Roza em 1788 - estão expostos no Museu de la Rochelle -, num quadro intitulado A Mascarada Nupcial.
O escritor cabo-verdiano já dera conta dessa pintura na capa de um livro de Bruce Chatwin, O Vice-Rei de Ajudá, e nela reparara também em Siríaco, vestido apenas com um pequeno calção de riscas pretas e brancas, como que a certificar as duas cores da sua pele. Tal como o personagem de Chatwin vinha de S. Salvador da Bahia, também Siríaco veio daí para Portugal. Para Joaquim Arena havia outros sinais a dar importância no quadro, as indumentárias, as casacas e os tricórnios, pouco habituais em Portugal. Logo ficou fascinado por Siríaco: "Que tem vitiligo e em Cabo Verde cresci com pessoas que eram malhados - não usávamos o conceito de vitiligo -, mas esses tinham uma pequena mancha no corpo ou nas mãos e nunca numa extensão tão grande." Como os franceses também tiveram casos semelhantes nas Antilhas, Arena descobriu uma exposição em que Siríaco também fazia parte desse "catálogo de freaks" habitual à época: "Serviam para serem exibidos e no caso de Siríaco existe um fascínio por essa personagem que veio do Brasil, oferecido pelo governador ao príncipe herdeiro, D. José, com doze anos. Arrancam a criança de onde nasceu e trazem-na para cá".
A partir da descoberta, Joaquim Arena vai querendo "dar corpo a essa história" e responder "como é que terá sido viver numa família com este problema, como seria viver na corte e ser mostrado à aristocracia de outras cortes da Europa, ou seja, mais não ser do que uma figura para ser observada como um animal de estimação". Não era só Siríaco, diz, "havia doze anões - homens e mulheres - que faziam parte dessa corte exótica em que não sendo aristocratas vivem dessa maneira". Ao consultar documentos, descobre registos das despesas com a sua educação, saúde e roupas nos orçamentos reais. São protegidos de D. Maria, como era o caso de outra anã, D. Rosa do Coração de Jesus: "Uma negra retinta que ia com a rainha para todo o lado, como se pode ver nas referências de um inglês, William Beckford, que fala dessa mulher nos seus relatos sobre a estada em Portugal."
"Encontrei muita informação, cruzei-a, e com esses pedaços comecei a construir uma vivência para esses anões", recorda. O estudo da presença dos africanos em Portugal tem vindo a crescer e entre os vários trabalhos estrangeiros de investigação avulsos destaca-se um mais importante, o ensaio do brasileiro José Ramos Tinhorão, intitulado Os Negros em Portugal, considera o autor. Mais recentemente, refere, "outros investigadores produziram teses universitárias e ensaios extraordinários, entre os quais estão documentos como a relação das despesas do Paço Real". E a pergunta que fez, quanto é que a administração pública portuguesa gastou com estes anões de uma corte exótica, teve uma resposta: "Encontrei Siríaco nessas listas; quanto é que recebia o mestre-escola que os ensinava, quanto gastaram nos curativos deles quando estavam doentes., entre outras despesas." Face a toda esta documentação, o protagonista de Siríaco e Mister Charles ganha uma vida real pois "existe, face às anotações das despesas", confirmada também pelo referido quadro e por mais dois em que surge representado: "Achei que tinha matéria-prima para uma história que me perseguia há muito tempo."
Além de Siríaco, Joaquim Arena queria cruzar o protagonista com outro que também o cativava há bastante tempo: "Quando olhava da janela do Palácio do Governo [foi conselheiro cultural da presidência], via os barcos a chegar; a maior parte vem pelo lado esquerdo, do norte, fazem sempre a mesma manobra como os antigos, que fundeavam ao longe porque não havia cais." Então, foi impossível não voltar ao passado, quando Darwin chegara no Beagle à ilha de Santiago, em 1832, e por aí ficou dezasseis dias: "Ao olhar para o ilhéu que há em frente à Cidade da Praia, imaginava a chegada de Darwin ao arquipélago. Foi nesse local que a expedição de Darwin se instalou inicialmente e montaram as tendas, as máquinas de cálculo de posicionamento geográfico, e fez as primeiras pesquisas com a fauna marítima, as rochas, o baobá e outras coisas com que se confrontou na ilha."
As gravuras antigas que refazem esse momento ajudaram a recriar como terá sido o desembarque, mas, explica, "quis ir mais longe e reunir Siríaco e Darwin na sua passagem por Cabo Verde. É a minha parte, quando dou corpo a Siríaco e o ponho a viver até ao fim dos seus dias em Cabo Verde". Na realidade, Siríaco desaparece da História quando embarca com a família real na "fuga" para o Brasil devido às invasões francesas em 1807 e Darwin irá deixar para trás Cabo Verde para prosseguir a expedição às Ilhas Galápagos. Darwin e Siríaco representam os dois lados de uma mesma curiosidade para os habitantes de Santiago, como diz Arena: "Darwin é um estrangeiro e é menos estranho porque a Praia era um roteiro desde há muito para quem navegava - tanto Vasco da Gama como Colombo aí fizeram a aguada - e Siríaco "ficaria" na ilha quando a corte se muda para o Rio de Janeiro, pois há uma parte da frota que se abriga de uma tempestade em Cabo Verde." A narrativa parte desta encruzilhada fictícia: "Se calhar, ficou por aqui e fez uma vida na ilha, apaixona-se, e quando Darwin passa por lá em 1832 encontram-se. Era a união de duas figuras históricas que me ofereciam uma boa narrativa."
Darwin e Siríaco rivalizam pelo protagonismo no livro, mesmo que o segundo se destaque: "No caso de Darwin, a minha surpresa é que o cientista que passou por Cabo Verde ainda não era aquele que conheceremos. Ele tem 22 anos e Cabo Verde é a primeira paragem do Beagle. Tinham tentado parar na Madeira mas o mau tempo impediu-os, em Tenerife uma quarentena também, e Santiago é o primeiro confronto com o mundo que irá conhecer e aprofundar para escrever o seu livro famoso. Além de que a vida anterior de Darwin é menos conhecida e isso possibilitou-me descrever a sua infância e juventude. É aí que procuro as cartas que trocou com uma jovem, a Fanny Owen, que me permitem contar duas vidas e ter material para escrever a minha história."
Esta história de um homem malhado vai interessar aos leitores de Cabo Verde?
Enquanto a escrevia não pensei num leitor específico, mas acho que sim. O recriar a vila da Praia no início do século XIX é cativante e pode ser que Darwin ajude a interessar os leitores. Ainda hoje os nossos escritores mais reconhecidos são os do neorrealismo dos anos 1930 e 1940 porque tratam da fome, que se tornou um tema literário muito bem marcado. Até hoje a ajuda externa é necessária pois a fome ainda é um espetro.
De Lisboa nada ia para Cabo Verde!
Nada, porque desde o povoamento que a preocupação da coroa era manter a posse e a cobrança de impostos; as ilhas eram entregues a governadores e nas mais áridas deixava-se lá o gado e só se regressava uma vez por ano para se fazer a chacina. Ainda no século XX era em muito assim, tanto que a emigração devido ao abandono total foi enorme.
Mesmo assim, foi das poucas "colónias" que não queria a independência.
Foi uma opção política e estratégica de Amílcar Cabral juntar o arquipélago à Guiné, se bem que haja outras razões históricas, para se conseguir a independência. Se havia em Cabo Verde uma sensação de abandono, contudo, esta não era insuficiente para reivindicar a independência como seria o caso de outros territórios ultramarinos.
Faz questão de não passar ao lado da escravatura. Porquê?
O facto é que mesmo já tendo sido proibido o tráfico negreiro, ele mantém-se por várias décadas devido à conivência dos cabo-verdianos com os portugueses e os cubanos. Os locais beneficiam-se muito desse comércio, porque vão buscar escravos à Guiné e estes são levados para Porto Rico e Cuba, por exemplo, e são eles que fazem com que seja possível fugir à fiscalização da comissão mista luso-britânica que vistoria os barcos. As embarcações estavam em nome de cabo-verdianos, o que é outra história que não está escrita e que alguém tem de o fazer.
A escravatura é uma questão que a história de Cabo Verde não poderá ignorar?
Exatamente, até porque o povoamento das ilhas já foi feito com a ajuda dos cabo-verdianos, que acabam por ver nos negros um negócio. Onde não existe qualquer solidariedade de raça, tanto que em Cabo Verde os caçadores de cabeças negros eram pagos para irem buscar os fugitivos que se escondiam nas montanhas.
A literatura cabo-verdiana, por exemplo a do movimento Claridade, não se foca nesse tema, antes nas fomes e nas secas. Onde está a escravatura na literatura?
Há um livro que se chama O Escravo, mas é escrito por José Evaristo D"Almeida, um português que lá viveu muitos anos. É considerado o primeiro romance cabo-verdiano, apesar de não ser de um natural. A escravatura também não é um tema porque as fontes são pouco claras e por ser um tema que se torna estranho. Vamos ao Brasil e há relatos de pessoas que foram netos de escravos, nós não temos isso. É muito remoto, os negros senegaleses e guineenses quando chegavam a Cabo Verde eram logo rebatizados como António ou Manuel e tornados cristãos. Acabava o islamismo e os nomes tribais e desse modo apagou-se muito da memória. Na literatura, também não é um tema porque não está muito consciente - não é por ser fraturante. E há outra questão, dadas as secas e as fomes constantes, o branco e o negro andavam juntos a catar comida, ombro a ombro, e não como no Brasil, onde um estava na plantação e o outro na senzala. Quando não chovia, morria-se. Se não vinham víveres de Lisboa, a sorte do branco, do preto ou do mulato, era igual, o que diluiu a questão da escravatura como instituição. Houve e há tentativa de alguns fundamentalistas em criar uma reação, até de derrubar estátuas, mas as respostas a esses movimentos são muito negativas.
Haverá um paralelismo entre a chegada do Beagle a Cabo Verde e os Descobrimentos portugueses?
Existe um paralelismo, que é o maravilhamento. Sabe-se bem o que foram os tais achamentos e o lado mais sórdido e sinistro que deles resultam, no entanto havia pessoas nesses navios que estavam interessados no conhecimento de outros povos e os portugueses também tiveram esse lado. No caso do Beagle, há outra coisa importante, é que Darwin vinha de uma família abolicionista e mostra o maravilhamento dele perante aquele encontro na Cidade da Praia e no que percorreu da ilha de Santiago - isso não é ficção. Em 1832, ainda se caminhava para a desumanização do negro com o Congo do Rei Leopoldo, a guerra civil americana, o racismo científico dos franceses, mas o que Darwin regista no seu caderno é um falar bem das pessoas com que se encontram.
É a primeira vez que está em contacto com negros?
Ele vem de uma sociedade tradicional e racista como era a inglesa e em Cabo Verde dá espaço à atitude abolicionista da sua família em vez de ter o comportamento de um qualquer compatriota. Impressiona-se positivamente com o que o rodeia, aliás, creio que é a primeira vez que o batuque é registado, quando foi presenteado com uma despedida de mulheres vestidas de linho branco. Não há uma linha nas suas anotações de desprezo sobre aqueles com que convive.
Vai publicar nos EUA brevemente Debaixo da Nossa Pele. Do que trata?
É um livro que é um misto de viagens, biografia, ficção e ensaio, que resulta de caminhadas de vários dias a pé ao longo do rio Sado - em Rio de Moinhos e São Romão do Sado -, onde encontrei pessoas com ar de cabo-verdianos, os descendentes de escravos que foram para lá no final do século XVIII quando começou em força a cultura do arroz. Como era uma zona muito isolada, casavam-se entre si e a diluição tem levado muito tempo. Em Lisboa, as comunidades negras perderam a identidade e o aspeto mais rapidamente.
O romance refere essa grande presença de negros em Lisboa.
Sim, no século XVI eram dez a quinze por cento da população. Tornou-se moda as famílias com um mínimo de posses fazer como primeira compra um escravo. Dava estatuto e com o andar do tempo o escravo era também uma garantia de rendimento.
Siríaco era mais um animal de estimação?
Sim, era assim que ele era visto pela corte e por essa razão bastante exibido. Inicialmente, foi uma figura que o príncipe, que era o seu dono, apresentava às visitas. Ele mandava aprontar Siríaco para o mostrar. Estávamos num século de uma certa abertura, do iluminismo, da Enciclopédia, que vê nascer os botânicos e os naturalistas e são muitas as coisas exóticas que vêm dos impérios para a Europa e, entre elas, bastantes figuras humanas. As outras cortes europeias também tinham figuras assim, mas não tantos anões negros e índios como os que acompanhavam D. Maria para todo o lado e de uma forma bastante ostensiva.
Joaquim Arena
Editora Quetzal
271 páginas