Postais. Escrevê-los é um acto de amor

Num tempo amigo de sms, <i>e-mails </i>e telefonemas a despachar, escrever postais e levá-los ao correio só pode significar uma coisa: gostar muito das pessoas a quem se destinam.<br /><br />
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No Natal não se trocam apenas presentes, também se trocam mensagens. A rapidez e a facilidade com que as novas tecnologias nos permitem comunicar impuseram a tendência de desejar boas festas por sms, muitas vezes com palavras iguais para todos e que muito pouco devem à originalidade. Escrevemos a mensagem, seleccionamos os nomes e pressionamos a tecla. Simples, rápido, cómodo. Há quem se dê ao trabalho de telefonar, mas isso é coisa que também começou a rarear desde a invenção do «short messages service» (serviço de mensagens curtas).
Não são como as cartas de amor - essas já ninguém as escreve por serem «ridículas»- , mas são um acto de amor. Num postal cabe tudo o que de essencial há para dizer. As imagens no verso ajudam a poupar as palavras e algumas até as podem substituir. Um postal tem o espaço certo para o texto, nem grande nem pequeno. O espaço certo para quem não tem tempo ou tem pouco para dizer, para quem só quer dizer «olá», «gosto de ti»», perguntar «como vais?» ou mostrar o sítio onde está. Num postal cabe tudo o que importa, a mensagem e a morada do destinatário. Um postal dispensa o envelope e nisso reside também a magia de os escrever. Imaginar que o que queremos dizer a quem gostamos - a quem gostamos sim, a um filho, aos pais, a um irmão, a um amigo, a um amor, porque só se escreve postais a alguém por quem temos afecto - pode ser lido por pessoas que não conhecemos, a pessoa que cola o selo, a coloca o postal na pilha da correspondência para ser enviada, pelo carteiro que o distribui, pelo vizinho quando o carteiro se engana na caixa do correio. Afinal, e se a caligrafia é bonita, quem resiste a ler meia dúzia ou menos de frases curtas, mesmo que não se conheça quem as escreveu nem quem vai receber?, ou a apreciar a fotografia de um local longínquo que nem em sonhos nos assaltam? Ninguém resiste, mesmo que não entenda a mensagem subliminar que as palavras possam encerrar. Os encontros da díade Jack Twist e Ennis Del Mar, corporizados por Jake Gyllenhaal e Heath Leadger no oscarizado filme de Ang Lee, BrokeBack Mountain, foram marcados assim, em postais enviados pelo correio, ao longo de vinte anos. Quem os lesse, nem por sombras adivinharia a necessidade que tinham um do outro, a ansiedade que os moía pelo próximo reencontro. Eram postais sem invólucro. Postais a sério chegam nus ao destinatário e fora das telas também há quem os escreva e os envie com amor. Alice, Manuel, António, Aurora e Cristina têm nos postais uma forma especial e imprescindível de comunicar.

«De qualquer sítio, todos os dias»
Alice Vieira, escritora

Escreve numa secretária que colocou a um canto da sala, junto à janela para aproveitar o mais possível a luz natural. O computador não o dispensa, as palavras fluem melhor se escritas no teclado e visionadas no ecrã. A caneta, usa-a para tomar notas e escrever postais, o vício que alimenta desde sempre. Para esta autora, que é uma das mais importantes escritoras portuguesas e vencedora de prestigiados prémios (Prémio de Literatura Infantil ano Internacional da Criança com Rosa, Minha Rosa Irmã, Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura Infantil com Este Rei que Eu Escolhi, Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra), escrever postais é há muito um gosto tornado uma necessidade. Alice envia-os de onde quer que esteja, mesmo se em Lisboa, onde vive. E aonde quer que vá, em férias ou em deslocações em trabalho, «a primeira coisa» que faz «é ir à procura de um quiosque, de uma loja que venda postais». E não escreve um nem dois nem três. Pelo menos cinco é certo que envia. «Tenho uma quantas pessoas amigas, muito próximas e de quem gosto muito, a quem escrevo sempre que vou a algum lado». Não tem de ser um sítio do outro lado do mundo ou que envolva  demorado percurso. «De qualquer sítio. Pode ser do outro lado do Tejo, numa ida à Trafaria, pode até ser numa incursão pela baixa de Lisboa, onde lojas com postais não faltam». Alice não precisa de motivo para  enviar postais a pessoas por quem sente estima. «Às vezes não é para dizer nada de novo, é só para dizer olá e perguntar como é que as pessoas estão». Nada que um telefonema ou um sms ou um email não pudessem cumprir, simplesmente «não seria a mesma coisa». Para Alice, sair à rua, entrar numa loja para escolher postais - escolhe-os a pensar em cada pessoa a quem os vai enviar -, voltar a casa, sentar-se à sua escrivaninha, pegar na caneta, escrever, sair de casa outra vez para ir aos correios, escolher os selos, colá-los e finalmente entregar os postais ao funcionário que está ao balcão - «quase sempre o mesmo, o Pedro» - é um ritual que aprecia com um «enorme prazer» que não encontra na rapidez e frieza de um sms. Isso não significa que descarte as mais valias tecnológicas. Alice, aliás, não vive sem elas: «Envio sms, faço imensos telefonemas todos os dias, escrevo e recebo emails, claro, hoje em dia são imprescindíveis». Mas nenhuma tecnologia substitui a intimidade de um cartão escrito à mão.
Os filhos, habituou-os, em pequenos, a mandarem-lhe um postal de onde quer que estivessem. «Queriam que me contassem tudo e eles assim faziam, coitados». Mesmo que por vezes não apetecesse contar ou não houvesse nada para dizer, tinham que lhe enviar um postal. Alice vai a uma das muitas caixas em que religiosamente guarda todos os postais que recebeu, retira um e lê em voz alta. É um postal que o filho lhe escreveu quando tinha dez anos e passava férias no Algarve: «Mãe, não tenho nada para dizer. Beijinhos. André». Lê outro postal, com a imagem de uma mulher no verso: «Avó, esta é uma marida do Henrique VIII. É a última» - «este escreveu-o um neto, de Londres, quando tinha cinco anos (hoje tem onze)». Mostra outros postais: de Amélia Rey Colaço, com quem trocava correspondência frequentemente, de Beatriz Costa, «a maior escrevedora de postais que eu conheci», que lhe dizia «que devia cultivar a gentileza e o hábito de agradecer, por exemplo uma entrevista, com um postal» , de Rosa Lobato de Faria, de outros que já partiram e por quem tem profunda saudade. Fora das caixas, em cima da mesa, estão cinco postais que acabou de escrever e que vai meter ainda hoje no correio. «Um é para o Manuel [Freire]. Escrevemo-nos todos os dias». Todos os dias envia um postal para o amigo cantor de posia e falador de poetas e quase todos os dias recebe um postal dele. Mostra alguns. São postais originais, divertidos, feitos pelo próprio e que estimulam a gargalhada na destinatária. «Este é ele, vestido de Pai Natal. Este aqui é ele, com toda a família».
São todos especiais, mas uns são mais especiais que outros e esses não os quer longe de si. Esses anda com eles na mala, dentro do porta-moedas, por causa do texto, por causa da pessoa que os escreveu. «Agora ando com um que me escreveu o [padre e poeta] Tolentino de Mendonça». O rosto de Alice transfigura-se. O sorriso fecha-se, Alice entristece-se. Fala de um postal que lhe tiraram há dois meses e que nunca mais recuperou: «Sei onde foi. Foi no Picoas Plaza que me roubaram a mala com tudo o que tinha dentro. Os documentos, é uma chatice ter que os renovar, mas o que me chateou mais foi terem-me levado um postal do meu marido quando eu estava grávida do meu filho (tem hoje 41 anos). Ele escreveu em nome do meu filho. Andava sempre com esse postal na minha carteira. Se ao menos mo tivessem feito chegar».
E como se as pessoas a quem gosta de escrever postais não fossem em quantidade farta, Alice juntou-se a meio mundo quando se fez adepta do postcrossing, um projecto criado em 2005 por um português e que hoje tem 13 mil pessoas de 202 países a escreverem postais umas às outras. Por causa desta correspondência com gente de todo o mundo, Alice tem uma colecção de selos de vários locais. De cá, envia os selos mais recentes e que considera mais bonitos. «É o Pedro Pires, dos CTT do El Corte Inglès, que me ajuda a escolhê-los. Há selos lindos, dá gosto ver».
Todos os dias recebe e todos os dias envia postais, mas os que se aproximam vão ser os mais intensos do ano. Na época do Natal, a escritora ocupa horas a fio com a caneta na mão, tantas são as pessoas de cá e do estrangeiro a quem quer desejar boas festas. Os de boas festas são quase todos da Unicef - «uma forma de ajudar» a organização que presta apoio às crianças mais carenciadas. Nesta altura, «o senhor Luís Filipe», o carteiro que há anos distribui a correspondência na área de residência de Alice, não tem mãos para o volume de postais endereçados à escritora. A maior parte, sem envelope, o que muito agrada a Alice. «O sr. Luís Filipe deve saber a minha vida toda [brinca]. Uma vez, por altura das eleições na Sociedade Portuguesa de Autores, em que fiz campanha, ele vinha pela rua fora a dizer: "ganhamos, ganhamos" - tinha lido o comunicado que me enviaram em carta aberta pelo correio».
As pessoas que escrevem a Alice não terão dificuldade em escolher um postal que lhe agrade, mas em caso de dúvida, a escolha é certeira se optarem por um que tenha uma imagem de um farol. Alice tem «um fascínio por faróis». Disso é testemunho a vasta colecção de miniaturas de faróis que expõe em cima da lareira.

«Uma tara como outra qualquer»
- Manuel Freire, cantor

Escreve postais quase todos os dias, um hábito que adquiriu nos últimos anos, substituindo-o por outro que até então alimentava, o de escrever cartas. «Virei-me para os postais porque têm pouco espaço para a escrita, não exigem muito tempo, têm imagem». Escreve postais porque sempre gostou de escrever aos amigos, reconhecendo num cartão ilustrado com a sua caligrafia a vantagem da aproximação, da intimidade. «É uma forma de estar mais perto dos amigos», de contrariar a distância que as tecnologias e a vida afogada em trabalho impõem. «Cada vez as pessoas se afastam mais umas das outras, têm menos tempo, menos paciência. Antes havia um gosto partilhado por muitos, havia o culto das cartas. Quase toda a gente escrevia cartas, antes da invenção dos meios de comunicação que hoje todos temos à disposição. Isso é bom, não digo que não, sou um utilizador diário das novas tecnologias, mas perdeu-se aquele hábito de escrever cartas. Eu não quero perdê-lo e é por isso também que faço questão de o cultivar». Além de Alice Vieira, em quem tem uma das suas «mais fiéis correspondentes», tem um amigo em Leiria para quem escreve postais quase todos os dias.
Desde que, por indicação médica, teve que desacelerar o ritmo de trabalho, tem mais tempo para se dedicar a esse hobby, pelo que passou a produzir os seus próprios postais. Sempre de máquina fotográfica a tiracolo, Manuel fotografa o que o interessa e o que lhe desperta a atenção, pode ser um trinco de uma porta antiga, podem ser bancos de jardim partidos. Imprime as que quer transformar em postais - «gasto rios de dinheiro em tinteiros e papel de fotografia» -, nas costas cola um papel grosso para que adquiram a espessura dos postais e desenha e desenha, à mão, tudo o que um postal deve ter: as linhas onde identifica o nome e a morada dos destinatários, a letra muito miudinha, a meio, entre a mensagem e a morada, a editora «Tansa e Tonto», os nomes dos seus animais de estimação - «são os meus cães que patrocinam toda a minha correspondência postal». De sentido de humor não carecem as suas criações. Para Alice, especialmente para Alice, afina o método de fazer postais, acrescentando-lhes um toque de personalização: recorta fotografias da amiga cola-as nos postais que lhe envia. Ou então palavras que recorta nos jornais e com que escreve frases divertidas  (Alice mostrou-nos alguns exemplares). O seu sentido de humor Manuel não o reserva apenas para a aparência dos postais, transporta algum para a mensagem. «Quando escrevo não é certo que esteja no sítio que digo que estou ou que a fotografia sugere. Posso estar em Londres e enviar para as duas ou três pessoas com quem me correspondo assiduamente postais com imagens da China ou de Nova Iorque». Isto, porque geralmente quando embarca já leva escritos e com os destinatários e moradas respectivos, «quando chego aos sítios é só comprar os selos e enviá-los». Também, porque Manuel gosta de brincar, de induzir o engano, embora alguns amigos já lhe conheçaem esta matreirice e entram no jogo, tentando desvendar na procura de sinais onde é que Manuel realmente estará.  «Sou um ajuntador de muitas coisas, entre elas postais e selos. Tenho muitos, muitos selos portugueses. Procuro as edições menos conhecidas, selos que não sejam facilmente identificados, que não tenham a palavra Portugal legível. Uma vez, a uns amigos meus que foram passar férias ao Egipto, enviei-lhes um postal do Egipto, com um selo que podia perfeitamente ser do Egipto, com uma imagem de um local onde eles tinham estado e ainda por cima com um papel carta de um hotel de lá, desses papéis cartas que os hotéis têm em cima da secretária para tomar notas. Quando comentaram comigo, estavam admirados com a coincidência de termos estado quase ao mesmo tempo nos mesmos locais. Mas depois, conhecendo bem esta minha faceta brincalhona, começaram a desconfiar. Era muita coincidência. Perceberam o jogo».
Uma regra tem, a de nunca enviar postais escondidos dentro de subscritos. «Os subscritos são para as cartas. Se enviasse os postais fechados num envelope, deixavam de ser postais». Por semana, pode levar ao correio seis como pode levar 40 postais. «Depende da vontade, mas pelos menos meia dúzia é seguro». Recentemente, houve uma semana em que a escrita diária aumentou: «Um amigo meu combinou fazer-me um jantar em minha casa, porque a casa dele estava em obras. Chegou a noite do jantar, estava eu, a mulher dele e o meu filho à espera em casa e ele nada. Nem sequer lhe podíamos telefonar porque não tem telemóvel. Passado um bocado chega. Tinha-se esquecido. Levou-nos a jantar fora e pagou conta, claro. O jantar em minha casa ficou recombinado (vai ser  hoje à noite). Para que ele não voltasse a esquecer-se, enviei-lhe postais todos os dias a lembrá-lo».
Os de Natal, da Unicef ou de outras organizações de solidariedade e também de sua criação - uma fotografia dele próprio vestido de pai Natal -, Manuel Freire envia muitos para muitos amigos, mas não necessariamente na época de Natal. «Posso enviá-los durante o ano. Tenho amigos que reclamam se não recebem um postalito meu de boas festas ou de aniversário quando fazem anos. É engraçado isto de escrever postais. Todos os meus amigos sabem desta minha tara por postais, de maneira que quando vão a algum lado trazem-me postais. Aquele do Egipto que eu enviei a um casal, foi-me trazido de lá. Eu nunca fui ao Egipto. Faz parte do jogo, da brincadeira. Se eu lhe enviar um postal de alska não qer dizer que esteja no Alaska ou que alguma vez lá tenha ido».

«Uma ligação poética»
- António Carmo, pintor

Alguns desenhos e quadros de António Carmo estão reproduzidos em postais, a pedido de autarquias e de instituições de apoio social que com a sua venda angariam receitas para desenvolver projectos solidários. Mas os postais que antónio envia aos amigos, a muitos deles, são únicos e desenhados na hora. Alice Vieira tem uns quantos. A escritora faz parte da lista de pessoas com quem o artista plástico mais se corresponde via postal. Há anos que é assim, nenhum sabe precisar há quantos. É só quando António vai para fora, em trabalho ou de férias, que os postais que envia são outros que não os desenhados pela sua mão. «Geralmente escolho postais com imagens ilustrativas da cidade onde estou. Tenho essa pancada há muito tempo. Não sei explicar porquê, talvez por ser uma forma de partilhar com os amigos um momento da minha passagem por certos locais, para que eles vejam um bocadinho que eu vi, um monumento, um quadro de um museu. A última viagem que fiz foi há poucos dias, estive na Polónia. Não há sítio onde eu vá que não compre postais para enviar a algumas pessoas» - além de Alice, o jornalista Baptista Bastos, o actor Vítor de Sousa, o fadista Carlos do Carmo, o escritor Urbano Tavares Rodrigues, «esses são certos»,  «tenho outras pessoas a quem envio postais de vez em quando, pintores portugueses e uns quantos de outros países. Há 22 anos que exponho na Bélgica, o que me fez ganhar o hábito de também escrever postais a críticos de arte. Nesses casos são sempre postais desenhados por mim ou com fotografias dos meus quadros, geralmente os mais recentes».
António Carmo não consegue identificar a altura em que começou a escrever quase diariamente postais, mas sabe descrever o que sente durante todo o processo: «Escrever postais é uma ligação poética. Tenho uma grande necessidade de chegar a um sítio qualquer  e escrever uma mensagem para os amigos, transmitir-lhes a minha felicidade». O artista, que vai ter uma sala com o seu nome no Museu de Peniche, não descarta outra razão: «Talvez por o postal estar muito associado à imagem. Eu pinto, desenho, sou artista plástico. A pintura para mim é o meu respirar, é a minha vida, deve ser por isso que tenho a pancada dos postais. Também os colecciono». Vai buscar às Tertúlias da Brasileira mais uma motivação: «Ando lá desde os meus oito ou nove anos. Sempre me atraiu o mundo dos artistas. Já nessa altura eu sabia que o meu caminho seria esse. A Brasileira era o ponto de encontro de muitos, foi lá que conheci o Almada [Negreiros], o Abel [Manta] o Jorge Barradas, o Lima Couto e outros. A Brasileira foi a minha internet. Esta minha ligação aos postais deve ter muito a ver com o culto do convívio, um convívio humanizado, de ligação, de afecto».
E uma vez que nunca gostou de escrever textos longos, a vantagem dos postais é clara: «Escrevo o essencial, para mim chega, é o ideal. Cartas não escrevo, não tenho paciência». A mulher  acrescenta: «Ele gosta tão pouco de escrever que até nos postais, para escrever o menos possível, desenha uns bonecos para ter que escrever ainda menos».
 

«Um vício que alimento há 54 anos»
 - Aurora Oliveira, reformada

Nas mãos, o último postal que recebeu, em português e com uma imagem das Portas do Cerco, o símbolo que assinala o desenvolvimento de Macau. «Chegou ontem, é de um jovem chinês de 24 anos que vive em Macau, está escrito em português. Há dois anos ele não sabia uma palavra portuguesa e agora escreve um português quase perfeito. É o primeiro postal que me envia. Um dia disse-lhe que morei na Praça da Portas do Cerco, numa casa aqui mesmo ao lado [aponta para o postal], é por isso que escolheu um com esta imagem. Fui feliz aqui, tenho boas recordações».
Há muito que Aurora deixou de saltar de um lado para o outro, de cidade em cidade, de país em país, com os pais. «Até aos meus dois anos já tinha vivido em 23 casas, em terras diferentes de Portugal: Estremoz, Coimbra, Bragança, Lisboa, eu sei lá, muitas». A profissão do pai, militar do Exército, obrigava a deslocações frequentes e «por ser um homem de família, que fazia questão de ter a mulher e filhos perto dele, levava-nos. Então lá íamos todos, um ano aqui, dois anos ali, cinco acolá. Em Macau vivi oito anos. Foi há 50 anos. Já lá voltei. Vivi também em Luanda muitos anos».
Quando a autonomia chegou, com a conclusão do curso de português e inglês e um emprego a dar aulas que lhe garantiu a independência financeira, Aurora não deixou de percorrer o mundo. Fixou residência definitiva em Lisboa e passou a explorá-lo como turista, em períodos de férias, dando início a um vício mantido até então: escrever postais. Hoje tem 84 anos e uma sólida memória dos sítios por onde passou. Quando fala sobre alguns dos locais que mais a marcaram, o nome das ruas, o nome de um café ou de um restaurante, de uma ponte, saltam-lhe sem hesitações, como se os tivesse fixado há instantes, como se os acabasse de ler numa revista de viagens. Fala de duas viagens, a que mais gostou e a que mais desilusão lhe causou. Sobre a primeira: «Fui no transiberiano. Foram quatro dias e quatro noites a andar de comboio. Fiz metade do percurso - de Moscovo até à capital da Sibéria, Novosibirsk. A viagem toda demorava oito dias e oito noites. Apesar da viagem ter sido incómoda e da fome que passei, uma fome de morte que não imagina, adorei, talvez por ser tão diferente das que fiz. Na Rússia, não serviam refeições nas viagens de avião em carreira doméstica, nem sequer nos percursos mais demorados. Desconhecíamos isso e como tal não nos preocupamos em levar comida. A viagem demorou oito horas. Quando aterramos, numa cidade não turística, não tínhamos rublos, só dólares, e por isso não podemos matar a fome. Apenas no dia seguinte é que podemos comer, quando fomos a uma cidade turística trocar os dólares por rublos. Foram 24 horas sem nada no estômago. Um horror». De Moscovo, enviou postais com mensagens sobre o famoso Lago Baikal, o mais antigo e profundo lago do mundo, que contém 1/3 de toda a água doce do mundo. É Património Mundial e nele desaguam 300 rios.  «Conhece?, fica perto de Irkutsk. Quando as temperaturas são muito baixas, o lago fica congelado. O gelo é tão sólido que durante a guerra chegaram a construir uma linha de caminho de ferro em cima do gelo para encurtar caminho».
Outra viagem que recorda, mas pela desilusão, foi a que fez ao Texas para visitar a casa onde foi gravada a série Dallas. Aurora estava à espera de encontrar a casa que durante anos vira na televisão, longe de pensar que muito do que vira era produzido em estúdio e que nem sequer fazia parte da mansão. «Lembra-se daquela escadaria de acesso ao primeiro andar, onde ficavam os quartos. Não existe. A casa não tem essas escadas. Disseram-me que as cenas em que apareciam as escadas eram filmadas noutra casa. E não era só as escadas que faltavam, quase tudo era diferente. A única coisa que me pareceu mais ou menos igual foi o quarto do JR Ewing e da Sue Ellen [personagens da série]. De resto, nada me pareceu semelhante».
Não há sítio onde Aurora vá que não envie de lá um postal para alguns familiares e amigos. A sobrinha Alice Vieira, como não poderia deixar de ser, é uma das pessoas a quem mais escreve. «Impensável não lhe enviar um postal, ela adora, tem caixas deles. Depois há duas ou três a quem não deixo de enviar. E se calha numa mesma viagem ir a várias cidades, compro postais de todas elas e envio. Há alturas em que numa viagem vou aos correios enviar postais quatro, cinco vezes».
Aurora tem o espírito de um andarilho e condicionada no último ano pela falta de saúde para viajar como antes, longas distâncias, arranjou uma outra forma de viajar para longe, sem sair do conforto do seu sofá, nas páginas da National Geographic americana. «Tenho as edições todas desde 1967. Adoro esta revista, entretenho-me a lê-la. É uma forma também de continuar mundo fora». Postais continua a enviá-los, os que compra em Lisboa, na baixa. «Gosto de percorrer aquelas lojinhas que expõem os postais cá fora, no passeio. Geralmente compro aqueles que têm imagens desta linda cidade que é Lisboa. Dos sítios que conheço, e olhe que são muitos, Lisboa é a minha cidade favorita».  Enviava-lhes postais. Se calhava numa mesma viagem ir a várias cidades, enviava postais de cada uma delas. Tinha alturas em que me deslocava aos correiros três ou quatro vezes numa mesma viagem».


«Não gosto de mim quando despacho as pessoas»
- Cristina Ovídeo, editora

«A minha mãe enviou-nos, a mim e a meus irmãos, somos quatro, este postal de Londres. Foi há uns anitos, éramos todos miúdos. Os meus pais ausentavam-se muitas vezes de casa, íam para fora,  para participar em congressos. Nessa altura, confesso, li-o e não pensei duas vezes no seu conteúdo. Reli-o há poucos dias, depois de combinarmos este encontro. Achei graça querem fazer um trabalho sobre pessoas que escrevem postais porque lembrei-me logo deste. Antes de chegarem voltei a lê-lo e é curioso que a sensação é outra, é diferente da que tive quando o li pela primeira vez». Dessa, Cristina pensou o que qualquer pós-adolescente na faculdade pensa quando confrontado com as saudades piegas de uma mãe que está a quilómetros de distância. «Na verdade, acho que nunca cheguei a ler este postal. Achei amoroso, mas não atingi o alcance destas palavras». Agora, que é mãe de dois meninos, do António, onze anos, e da Maria, nove anos, Cristina emociona-se ao abrir o cartão dobrado em dois com uma longa mensagem sobre o que é ser mãe. Revê-se no que relê. Partilha apenas uma passagem: «Ela diz aqui, já perto da despedida: "Espero que sejam amigos e serenos. Não se esqueçam de escrever aos avós a perguntar se estão bem". A minha mãe tinha esse cuidado, lembrava-nos de escrever às pessoas de quem gostamos. É uma simpatia, uma gentileza que faço questão de seguir e que tento transmitir aos meus filhos».
Embora cumpra a tradição de no Natal enviar postais de boas festas para os amigos mais próximos e para muitas das mil e uma pessoas que conhece no universo da publicação de livros (actualmente é editora executiva na Clube do Autor e antes desempenhou as mesmas funções na Oficina do Livro e na Planeta), é em férias que Cristina prefere escrever postais. Os de Natal são invariavelmente os da Unicef, para ajudar a instituição; compra-os numa estação dos ctt e leva-os para casa, para pensar calmamente no que vai escrever. «Penso nas palavras que envio num postal. É assim que deve ser. Nunca escrevo a mesma mensagem para toda a gente, mesmo que o objectivo seja o mesmo, o de desejar boas festas. E os postais são também diferentes. Não faria sentido o contrário. Se fosse para ser uma coisa rápida, a despachar, enviava emails ou sms. Ao acto de escrever postais associo tempo, reflexão, disponibilidade». É por essa razão, aliás, que sente mais gozo em escrever postais durante o período de férias. «O dia-a-dia é sempre muito acelerado, intranquilo. Não gosto de mim quando sinto que estou a despachar as pessoas. Gosto de lhes dedicar o meu tempo, o que nem sempre consigo. Nas férias não vivo esse desassossego que toma conta de mim quando estou a trabalhar. É nas férias que tenho mais tempo para me sentar à mesa de uma esplanada a escrever o que no momento me vai na alma. A distância de casa, da correria do quotidiano ajuda. Geralmente reservo os fins-de-tarde para isso. Vou às lojas que vendem postais, escolho os que têm fotografias dos sítios onde estou e depois escrevo, escrevo, emociono-me muitas vezes se as saudades apertam. Tenho umas 15 pessoas a quem envio postais na férias. No Natal são mais, claro. No Natal não tenho ideia, são muitos. Este ano ainda não os fui comprar. Está na altura».
Pega outra vez no postal que a mãe lhe enviou de Londres, há uns vinte anos. Relê, emocionada.. «Ela acertou. Ser mãe é mesmo isto».


Neste Natal, personalize os seus postais
Através do serviço «o meu postal», pode criar os seus postais de Natal personalizados com imagens e textos à sua escolha. Só precisa de compor online os seus postais, em papel de 210 gramas e medidas 105 mm x 150 mm, indicando o nome e a morada dos destinatários, e os CTT fazem o resto, tratam da impressão e do envio por correio com ou sem envelope, conforme a sua preferência. O selo também pode ser personalizado, seja com imagens próprias  ou escolhendo-as numa galeria de fotografias disponíveis no site www.ctt.pt/fectt/wcmservlet/ctt/loja/produtos/meu_selo/oquee.html. Já imaginou a cara dos avós ao receberem um postal que tem um selo com a cara dos netos? A ideia é divertida e todos os anos soma adeptos. Pedro Pires, funcionário dos CTT há 18 anos, não tem dados que lhe permitam avançar o número exacto de clientes fazedores de postais de Natal e de selos on-line, mas garante que de ano para ano são cada vez mais. Tendência contrária observa nos postais escritos à mão, de Natal e outros, apesar de trabalhar num balcão atípico, localizado numa zona de muitos hotéis com estrangeiros, que arranjam sempre tempo para escrever postais aos amigos com imagens de Lisboa. Esse movimento de turistas, diz Pedro, acontece todo o ano. Antes do Natal, o movimento cresce, é certo, porque «ainda há muitas pessoas que desejam boas festas por postais, uns compram-nos aqui ao balcão (só vendemos os da Unicef) - ainda ontem um cliente comprou-me mil postais -, ainda assim não se compara com o movimento de há uns anos atrás. Antes escreviam-se muitos mais postais». Pedro trabalha nos CTT do El Corte Inglès, em Lisboa, onde Alice Vieira despacha todos os dias, sem falta, os postais que escreve para os amigos. É ele que lhe mostra os selos e a ajuda a escolhê-los. «A pretexto do centenário da República, saiu uma edição chamada "As Mulheres da República", que a Alice adora. No que toca ao envio de postais, é a minha melhor cliente. Os postais dela nunca vão com franquias mecânicas (carimbos). Vão sempre com selos obliterados».
 

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