Portugueses continuam a matar e morrer por amor

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Vimos por este meio dizer que as nossas vidas acabam aqui." O fim anunciado em 11 palavras.

Carla, 29 anos, estava separada há um mês. Nesse dia o telefone tocou. Era Leonel, 38 anos, a pedir que o acompanhasse aos Correios, em Vila Franca de Xira. Havia uma carta para levantar. Sem resistência, concordou. Afinal, havia ainda a uni-los as contas bancárias e outros compromissos. Mas Leonel fez um desvio no caminho e forçou-a a abrir a carta que ele própria escrevera com destino selado. Onze palavras que Carla leu até ao fim. Leonel, que não suportava a separação, disparou ali um tiro de caçadeira. Sobre ela. Depois, sobre si. Ficou um filho de 11 anos.

Este crime passional chocou os portugueses. Foi em Agosto de 2005. Este ano, no mesmo mês, e em três dias seguidos, registaram-se outros tantos crimes "por amor" (ver página seguinte ). Homens que matam as companheiras. Mulheres que matam os companheiros. É uma realidade transversal a todas as faixas etárias, e a todos os estratos sociais, ao longo de todo o ano. Não é um ímpeto de Verão.

"Os crimes passionais, e aquilo que eles representam, são o reflexo de uma lógica sociocultural que tradicionalmente tem menorizado as mulheres e legitimado os homens a castigá-las, inclusivamente com a morte", diz Sofia Neves, especialista em psicologia social e professora na Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Braga.

Fontes da Polícia Judiciária (PJ) garantem que os homicídios passionais têm vindo a diminuir. Mas, ainda assim, esta força de segurança registou, em 2005, 33 homicídios e 27 tentativas, em que as mulheres são vítimas dos respectivos companheiros. Este ano, até Maio, já estão registados 12 homicídios e nove tentativas - com a mesma tipologia. Recorde-se que o relatório da Amnistia Internacional, relativamente ao ano passado, denunciava em Portugal o assassínio de 33 mulheres às mãos dos respectivos maridos ou ex-maridos.

Estima-se, aliás, que no País aconteçam cinco homicídios conjugais por mês - a maioria sobre mulheres -, alerta a presidente da Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres, Elza Pais. Segundo esta socióloga, 83% dos homicídios conjugais, na década de 90, eram praticados por homens sobre esposas e companheiras. E este estereótipo tende a manter-se, de acordo com os dados da Judiciária, quando cruzados, também, com a actividade da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima), que, em 2005, registou 3442 crimes de violência doméstica.

Por trás da cultura

Os autores da maioria dos crimes passionais são imputáveis. Ou seja, são raros os casos de inconsciência por causas patológicas. Para Marlene Matos, o crime passional está relacionado, sobretudo, com estereótipos do papel do género - na família, no emprego, em todas as situações. "A mulher é ainda vista como subalterna do homem", diz esta psicoterapeuta da Unidade de Consulta em Psicologia da Justiça da Universidade do Minho.

Esta docente realizou um estudo junto de estudantes do ensino superior e concluiu que o estereótipo mantém-se entre os jovens namorados. "Eles continuam a exercer pressões psicológicas sobre elas, tendo-se registado, inclusive, casos de violência física. E elas resignam-se", explicou.

A professora da UCP Sofia Neves acrescenta: "O mito do amor romântico, que alimenta uma crença social no amor sacrificial por parte das mulheres, e que é um factor de risco para a violência na intimidade, configura uma forma de poder para muitos parceiros que, em nome de uma pseudo-supremacia masculina, usam a coacção física, psicológica e sexual como instrumento de dominação sobre as companheiras."

Além de que "honra e vergonha", são constructos muito presentes na mente masculina, observa, por seu lado, o criminologista Barra da Costa, referindo-se às situações radicais de infidelidade. Na maior parte dos casos, frisa, "os homicidas agem com o sangue quente". E o velho ditado "quanto mais me bates mais gosto de ti" ainda não foi, de todo, rejeitado pelas mulheres, adverte.

Neste sentido, Sofia Neves alerta: "A violência contra as mulheres continua a ser matéria de saúde pública, de direitos humanos e de democracia."

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