Portugal. "Fado à la Carte"

Mala de viagem (141). Um retrato muito pessoal de Portugal.
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Portugal tem características nas quais o mundo se deve inspirar. Porém, a última palavra de "Os Lusíadas" é "inveja", o que diz muito dos portugueses. A minha "viagem" ao meu país podia concluir-se assim, mas nem Portugal nem os leitores do "Diário de Notícias" mereciam o breviário. Porque não contar a história de um disco que percorre aquilo que, porventura, é o mais procurado pelos visitantes - a gastronomia portuguesa? Talvez o pequeno território permita que os portugueses conheçam melhor o trajeto dos alimentos até à sua mesa e o mundo deva aprender a relacionar-se com cada terra como os portugueses se relacionam. Tal como a gastronomia, nós sabemos dosear a inflexibilidade e o afeto, a acidez e a doçura, procurando sempre a medida correta de cada elemento. Neste disco a três (FF, Jorge Mangorrinha e Tiago Machado), uma abordagem original através de 10 temas musicais cria uma história que atravessa os passos de uma ementa à portuguesa. Para ouvir: Fado à la Carte - YouTube. Aqui, o fado e a gastronomia juntam-se à mesa, com propostas que saúdam a música e a alimentação em Portugal e que já ultrapassaram fronteiras. Convocam-nos ambos para uma manifestação de afeto entre nós e com outros povos, porque já se espalharam pelo mundo. Os portugueses criaram e disseminaram muitos sabores, imprimindo rituais e símbolos. O trabalho foi o resultado de uma pesquisa prévia à escrita poética, que junta a arte das palavras iniciáticas, a arte das paisagens sonoras e a arte da interpretação vocal e instrumental. Apresenta-se uma sugestão musical e gastronómica. Prepará-la fez a delícia dos participantes, sem preferência de prato, pois esta questão nunca se coloca quando se quer que o todo se misture harmoniosamente, através da inspiração poético-musical à mesa de um repasto. À escrita inspirada nos pratos de uma vida, juntou-se a música e a interpretação por parte de dois talentosos artistas - o compositor e o cantor -, acompanhados pelos músicos de excelência, entre percussão, baixo, guitarra portuguesa, piano, acordeão, violinos, violas e violoncelos. O resultado é verdadeiramente delicioso. Esta é uma criação a partir de tempos e espaços diferentes, pelos quais sempre se pautaram as pequenas ou as grandes refeições, mas também a partir de regras e códigos culturais, pelos quais se considera a alimentação um património de valor imaterial e de conteúdo transdisciplinar. O tempo é pautado, tanto pela azáfama dos pratos a preparar todos os dias, como pelo prazer de comer, com parcimónia ou rapidez. E o espaço induzido é diverso, consoante se esteja à mesa ou ao balcão, dentro ou fora da morada, na casa de pasto ou num hotel. Os tempos e os espaços mudam, mas há sempre quem cozinhe para nós e se baseie nas tradições ou na contemporaneidade. E esse lugar mágico é onde nascem os pratos. A cozinha é como uma espécie de estúdio para quem prepara refeições, tal como para quem grava canções. As músicas que escrevemos e se cantam pretendem celebrar o ritual do tempo e do prazer de cada verbo seguinte. Escrever, musicar, tocar, cantar, cozinhar, degustar e comer são actos de amor. Neles há coisas em comum, para os quais o espaço e o tempo são importantes, e também as companhias. A feliz parceria entre autor, compositor e produtor, intérprete, instrumentistas, técnicos, "designer" e impressor representa o afeto pela música e a gastronomia portuguesa, sob o signo dos pratos escritos, musicados, cantados e editados. "Fado à la Carte" está à mesa, que é a geometria genuína do abraço para quem sabe tocar a comida com uma combinação de sabores que seduzem a vista, o olfato, o gosto e o espírito, à espera de um tempo novo e ao encontro de tantos lugares que, em Portugal, acarinham a música e a gastronomia. Bom apetite! Em Portugal ou no mundo através da gastronomia portuguesa. É que o mundo deveria saber olhar para dentro e para fora como Portugal sabe.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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