Pergunta de partida: O que determina percursos de sucesso educativo?
O nosso apetite pelo dramático impele-nos a espreitar os rankings escolares, mesmo quando sabemos das suas limitações. É preciso ver o mundo tal como ele é, com factualidade. Isso implica estarmos dispostos a mudar a nossa visão do mundo, implica estarmos prontos para reconhecer a nossa reação instintiva e implica estarmos disponíveis para nutrir o nosso pensamento crítico. Ora, isso faz-se com humildade, curiosidade e abertura ao espanto. Até porque somos capazes de perceber o mundo corretamente sem termos de o aprender de cor. Hans Rosling explica isto muito bem no seu livro "Factfulness".
Os profissionais em colecionar factos, testar hipóteses e produzir evidências são mais conhecidos pelo nome de cientistas ou investigadores. Em Portugal, somos 50 000 investigadores e um quinto está nas ditas Ciências Sociais e Humanas (PORDATA, 2018). Uma das questões a que nos temos dedicado ao longo destes últimos dezassete anos de investigação é precisamente sobre que fatores contribuem para o rendimento académico em adolescentes portugueses. A comunidade científica tem congregado conhecimento, que decorre de décadas e décadas de investigação junto de alunos, professores, famílias e comunidades educativas, e mostra-nos uma tendência: os estudantes com desempenhos académicos mais elevados contam com mais oportunidades de aprendizagem de elevada qualidade, estão mais dispostos e mais capazes para aprender e para aproveitar essas oportunidades, e contam com condições antecedentes - ou seja, aspetos da sua vida, do seu contexto familiar e sociocultural - mais favoráveis.
Aliás, o nosso mais recente estudo nacional deixa muito claro que o rendimento académico é explicado por uma intrincada rede de fatores, pessoais e contextuais, e que tais fatores estabelecem entre si relações de diferente natureza: umas com carácter mais direto e outras mais mediado ou moderado. Este estudo envolveu uma amostra representativa de estudantes de todos os anos escolares entre o 6.º e o 12.º, a frequentar escolas públicas, de contextos socioculturais heterogéneos, de todas as regiões do Continente (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Sul) e regiões autónomas da Madeira e dos Açores. No Ensino Secundário, incluímos os cursos científico-humanísticos e tivemos ainda a oportunidade de recolher dados de duas subamostras de percursos educativos profissionalizantes: o Ensino Profissional e o Ensino Artístico Especializado (Artes Visuais e Audiovisuais). Participaram, ao todo, 6082 estudantes.
Os resultados do ensino básico permitem-nos concluir que o rendimento académico é tanto mais elevado quanto mais competente o estudante se perceciona nos assuntos da escola e quanto mais elevados são os seus desempenhos em provas cognitivas. Além disso, ser filho de uma mãe com mais habilitações académicas, donde se inferem mais oportunidades culturais e socioeducativas, e sentir-se mais ouvido e atendido pelos pais nos assuntos relativos ao estudo e à sua aprendizagem parece ser muito relevante para o rendimento académico. Estas variáveis, tomadas no seu todo, explicam 65% da variância dos resultados académicos dos estudantes do ensino básico.
No ensino secundário, o género é uma variável que passa a assumir alguma relevância nas diferenças de desempenho, com os melhores rendimentos académicos a verificarem-se junto das raparigas, ainda que sejam os rapazes a percecionarem-se como mais competentes a nível académico e a obter melhores resultados nas provas cognitivas. Além disso, quanto mais ouvido e atendido pelos seus pais se perceciona o estudante, mais tende a esforçar-se, a aplicar-se e a perseverar face a adversidades e essa perseverança e consistência de interesse por objetivos a longo prazo (grit) parece ter um impacto poderoso no autoconceito académico do jovem. Por sua vez, quanto mais competente o aluno se perceciona nos assuntos escolares, e quanto mais elevados são os desempenhos em provas cognitivas (cuja influência do background sociocultural familiar decresce ligeiramente), mais elevado é o seu rendimento académico. Se no ensino básico o conjunto das variáveis explica 65% da variância dos resultados, no ensino secundário o valor sobe para 75%.
Em poucas palavras: se queremos tornar possível um percurso de sucesso educativo importa que, em casa e na escola, a criança ou o jovem seja e sobretudo se sinta capaz, competente, se empenhe e preserve, se sinta ouvido, escutado e atendido nas suas preocupações, interesses e necessidades, pela sua família e pelos seus professores.
Isso passa por desenvolver trabalho com a administração central, regional, local e com as escolas para que possam, em primeiro lugar, reconhecer o valor e a necessidade de atuar com base na evidência científica. Passa por definir e desenvolver políticas educativas estratégicas, mais adaptadas às características dos estudantes e dos seus contextos familiares e socioculturais, no integral respeito pelas suas necessidades, interesses, ambições, capacidades e potencial. Passa por elevar a qualidade da formação inicial e contínua de educadores, professores, psicólogos escolares, e pessoal auxiliar. Passa por apoiar medidas que reforcem o trabalho curricular e não curricular de habilidades e processos cognitivos complexos como o raciocínio dedutivo-indutivo, a resolução de problemas, a organização e análise de dados, a leitura inferencial, que assumem particular relevância na aprendizagem e no rendimento académico. Passa por apoiar medidas de trabalho colaborativo efetivo entre educadores, professores, psicólogos, outros especialistas e técnicos, pais e outros significativos, comunidade, autarquia, instituições, organizações, associações, e outros grupos formais, não formais e informais com potencial educativo. Passa por apoiar crianças e jovens no processo de autoconhecimento e na (re)definição de percursos educativos para que correspondam, de facto, às suas características.
Enquanto investigadora tenho aprendido que para decifrar a ordem por detrás do caos é decisivo saudar a complexidade dos problemas e ser tolerante com a ambiguidade que a ciência e a vida exigem. É também estar disposto a encontrar pessoas com ideias diferentes da nossa, vindas de outras áreas aparentemente distantes da nossa. Rosling tem uma expressão muito engraçada: "Se a nossa ideia favorita for um martelo, procuremos colegas com chaves de fendas, chaves-inglesas e fitas métricas." É preciso olhar os problemas da educação de muitos ângulos, alguns inusitados até, combinar ideias e honrar o valor da humildade. É preciso humanizar o universo educativo; subtrair o desnecessário, expor o que basta, e restituir à criança e ao jovem a educação merecida, no pleno respeito pela sua natureza. Se a imprevisibilidade e as mudanças aceleradas marcam a complexidade dos desafios de hoje, é imperativo - mais do que relevante - mobilizarmo-nos e implicarmo-nos ativamente no objetivo da verdadeira Educação: inteligência + carácter (Martin Luther King, 1947). A Educação tem esse potencial e, por isso, os contextos de aprendizagem apresentam-se como tempos e espaços por excelência para a construção de percursos de sucesso, mesmo sob circunstâncias inesperadas.
Investigadora do Centro de Investigação em Educação (CIEd), Instituto de Educação, Universidade do Minho e professora adjunta convidada da Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal
O estudo "Contextos de aprendizagem, diferenciação cognitiva e rendimento académico em adolescentes portugueses" insere-se no âmbito do pós-doutoramento da investigadora-bolseira FCT com a referência (SFRH/BPD/93009/2013), orientado por Leandro S. Almeida e financiado pelo CIEd - Centro de Investigação em Educação, Instituto de Educação, Universidade do Minho, projetos UIDB/01661/2020 e UIDP/01661/2020, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT.