Nos últimos anos, o Peru teve mais de uma dúzia de primeiros-ministros, você incluído, e seis presidentes. O último a cumprir o mandato completo foi Ollanta Humala, em 2016. Como se explica esta situação no país? Esta instabilidade política que acaba de descrever, com mudanças de presidentes, alta rotação de gabinetes e de ministros, explica-se porque houve um confronto político que se iniciou interpretando mal a Constituição. Usou-se de maneira não permitida o conceito de "vazio por incapacidade moral permanente" que forçou à renúncia de Pedro Pablo Kuczynski [que sucedeu a Humala]. E a partir dele, a crise política foi praticamente incontrolável. Agora, é preciso dizer que o que gerou esta explosão de protesto popular foi a tentativa de golpe de Estado de Pedro Castillo que fracassou..Houve mesmo uma tentativa de golpe? Ele não podia dissolver o Congresso como tentou? Sim, foi um golpe de estado que fracassou. O presidente, de acordo com a Constituição do Peru, pode dissolver o Congresso se este censurar ou negar a confiança a dois conselhos de ministros. O que fez Castillo foi imitar [Alberto] Fujimori no seu discurso, isto é, tentar uma dissolução inconstitucional do Congresso. Mas ao contrário de Fujimori, cujo autogolpe funcionou, no caso de Castillo não. Mas ele, marcadamente, deu esse passo..E porquê fracassou? Porque num caso excecional, as Forças Armadas e a polícia nacional não apoiaram essa aventura golpista e isso é preciso destacar, porque o comportamento das Forças Armadas do Peru foi algo muito diferente do passado..Se as Forças Armadas tivessem apoiado, a situação hoje seria totalmente diferente. Exatamente..Estas pessoas que estão quase diariamente nas ruas, há mais de dois meses, a pedir a demissão da presidente Dina Boluarte representam todo o Peru ou apenas uma parte, como ela própria diz? Os protestos em democracia são justos. Há um setor que, sem dúvida, faz reclamações na zona sul que têm outras razões de queixa. Por exemplo, como pode ser possível que o Estado que agora tem recursos económicos não providencie água potável a todo o país? O curioso é que na zona sul, que é onde mais se protesta, é a região do Peru que tem sido governada por autoridades de esquerda, por movimentos regionais de esquerda, que no caso da água potável, por exemplo, defendem o monopólio das 50 empresas públicas de água, que não dão esse elemento fundamental para viver dignamente. Para que tenha uma ideia do drama, o Peru só supera em cobertura de água potável a República Dominicana e o Haiti. E isto realmente é inadmissível. Agora, ao lado dos protestos justos, têm havido atos de vandalismo. O facto de se queimar um polícia é um ato inumano. È um crime que tem que ser sancionado. Também tem havido algumas infiltrações. Mas, estes protestos que inicialmente pediam a libertação de Pedro Castillo, já deixaram de lado esse lema. Agora o que querem, o que o setor da esquerda radical quer, é a rutura da ordem constitucional no Peru, através da convocatória de uma assembleia constituinte, que não está prevista e sem sequer cumprir o procedimento constitucional. Além disso, exigem a renúncia da presidente. Mas temos que ser claros, não é apenas o governo o responsável por esta crise. O Parlamento também é. Podemos então afirmar que há uma cumplicidade do governo e do Parlamento no aprofundar da crise de instabilidade política no país..A presidente está a propor antecipar as eleições, mas o Congresso não o está a aprovar. Porquê? O Congresso está a arquivar os pedidos da presidente Boluarte. Neste caso, os congressistas, um número considerável, estão a privilegiar os seus interesses pessoais e partidários e a deixar de lado o interesse nacional. Não há outra explicação..Estão preocupados com o seu cargo e de poder não ser eleitos novamente... Exatamente. Disse-o claramente, penso que isso se percebe. Agora, daí a dizer ou afirmar como alguns setores o fazem, que no Peru há uma ditadura, isso não é certo. A senhora Boluarte chegou ao poder respeitando escrupulosamente os procedimentos de sucessão constitucional, porque Castillo deu um golpe. Agora, Boluarte foi ministra de Castillo durante um ano e meio, manteve o silêncio e deu o aval a todos os atropelos, violações, escândalos de corrupção de Castillo e dos seus compinchas. Porque é preciso não esquecer que a razão fundamental pela qual dá o golpe de Estado, que fracassa, é pelas graves imputações de caráter penal por corrupção. De que é acusado não pela oposição, não pelo Parlamento, mas por pessoas do seu grupo íntimo. E no final, percebe-se que fuja do país o secretário do presidente? Que fuja do país o ministro dos transportes e comunicações, que maneja a maior quantidade de dinheiro do Tesouro? Que fuja o seu sobrinho carnal, imputado num caso de corrupção? Isso merece uma justificação. E aqui é preciso criticar a postura de outros presidentes latino-americanos..A quem se refere? López Obrador, do México, Petro, da Colômbia, Arce da Bolívia e Fernández, da Argentina, que tentaram encobrir não só um golpe de Estado que não triunfou no Peru, mas também atos de corrupção. O senhor Castillo está na prisão por mandato judicial, não como mentirosamente disse o presidente da Colômbia, que tinha sido preso sem ordem judicial. Houve aqui uma ingerência dos governos de esquerda que é absolutamente inaceitável e condenável. E o que chama a atenção é que no final, também Boric, o presidente do Chile, que parecia que ia manter uma neutralidade a respeito da política interna - porque este é um assunto de política interna -, também fez apreciações fora da realidade. Então porquê? É preciso fazer a seguinte reflexão. Porque é que a América Latina tolera ditaduras como a de Cuba, a da Venezuela e a da Nicarágua, e agora tentou fazer uma defesa política de Castillo? O que é que está a acontecer à democracia na América Latina? E é por essa razão que é preciso rejeitar esta ingerência indevida destes países que supostamente são países irmãos..Acha que as eleições, quando se realizarem, vão solucionar esta crise? Os problemas não se resolvem da noite para o dia, e muito menos com atos de violência. O Peru, no passado recente, sofreu a violência terrorista. Sabemos que os problemas não se resolvem com violência, pelo contrário, agravam-se. Por essa razão os líderes da igreja católica, da igreja evangélica, os académicos, os grémios empresariais, fizeram um apelo à paz e ao restabelecimento da ordem. Penso que isso é importante para que, através do diálogo, que é algo fundamental em democracia, voltemos a colocar os problemas do país nos trilhos e a solucioná-los pela via constitucional. Que é o que deve fazer uma democracia. Lamentavelmente esta polarização faz com que os extremos, a extrema-esquerda e a extrema-direita, entrem num confronto e, a longo prazo, são as pessoas, é a cidadania, a que sai prejudicada..Mas o que devia fazer a presidente Baluarte? A presidente Baluarte o que tem que fazer é cumprir com a Constituição, que é algo que não fez o seu governo, e garantir a liberdade, isto é, o seu conteúdo político e económico, em termos gerais. Há uma crise e o país não pode continuar nesta situação, ela vai ter também que meditar se a sua continuidade no cargo está a afetar a situação. Há setores importantes, de direita e esquerda, que começam a pedir a sua renúncia..O facto de não ter apoios nenhuns no Parlamento torna a situação mais difícil? Sim, não tem apoio nenhum. Porque os seus antigos camaradas agora são os seus mais ferozes inimigos. Claro, usam argumentos desprezíveis, dizendo que se converteu numa "direitista" da noite para o dia, quando não é assim..Que papel tem ainda o fujimorismo? Keiko Fujimori, o grupo da Força Popular, é uma oposição. Neste momento também forma parte do grupo que não aprovou o antecipar das eleições. Isto é, apoiou o arquivamento dos pedidos da presidente, via a reforma constitucional, porque o que tem que haver é um recorte de mandato tanto do governo como do Parlamento..A situação seria diferente se Keiko Fujimori tivesse ganho as eleições em vez de Pedro Castillo? É muito difícil dizer, mas em qualquer caso, sabíamos que Castillo não tinha convicções autênticas, convicções democráticas, que não tinha experiência, que não tinha formação académica, e que ia acompanhado de um partido proclamado marxista-leninista. Mariateguista, como se diz no Peru. Mas, na realidade, o seu governo resultou ser mais calamitoso do que se pensou. Sobre Keiko Fujimori, já o disse, era o mal menor. Também não era uma garantia, mas pelo menos nos últimos anos, ela, ao contrário do pai, cumpriu com as regras da democracia. Mais, ela não fugiu do país, ela foi para a prisão. Isto é, há diferenças com o seu pai, mas certamente que a herança pesada do fujimorismo da ditadura do pai, motivaram que em duas eleições não tenha conseguido ganhar e que, neste caso, novamente pelo antifujimorismo, perdesse as eleições..Há alguma personalidade no Peru que ache que possa servir como candidato de consenso, para unir o país? É difícil....Muitos dos ex-presidentes estão a mãos com a justiça... Exatamente. Mas confio que, no tempo que resta até às eleições, se possam formar alianças em defesa da ordem democrática constitucional..susana.f.salvador@dn.pt