'Paradise'. Tempo (de vida) é dinheiro

<em>Thriller</em> alemão feito à medida dos fãs de <em>Black Mirror</em>, <em>Paradise</em> é um dos recentes casos de sucesso na Netflix. Um filme de alto conceito com premissa científica que explora uma ideia de futuro em que é possível comprar anos de vida.
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Técnicas de-aging à parte, há algo de muito perturbador na hipótese real de se fazer alguém rejuvenescer 40 anos numa questão de horas. É isso que acontece em Paradise, de Boris Kunz, um thriller de ficção científica que pega na ancestral luta do ser humano contra o envelhecimento e transforma-a num cenário com o seu quê de viável no nosso mundo de rápida evolução (e autodestruição). Situado num futuro próximo, este sucesso alemão da Netflix centra-se numa empresa de biotecnologia que garante o prolongamento da vida - na forma de injeções intravenosas de rejuvenescimento - a quem possa pagar por transfusões de... tempo. Ou seja: os dadores são cidadãos pobres ou refugiados que, em troca de dinheiro, cedem anos da sua vida aos ricos. "Já imaginaram o que seria se Wolfgang Amadeus Mozart não tivesse morrido aos 35 anos?", argumenta a CEO, para levar a água ao seu moinho.

Na demonstração prática desta ideia intrigante e assustadora, Paradise apresenta material quase novinho em folha; quando muito, ocorre-nos outro filme distópico de Andrew Niccol, Sem Tempo (2011), no qual as pessoas param de envelhecer aos 25 anos e a partir daí têm de comprar tempo. Ambas, à sua maneira, são versões literais da metáfora do tempo como dinheiro, no caso de Paradise sugerindo-se um conceito tecnológico suficientemente próximo do plano da realidade para agitar a mente do espectador. A dúvida é se se consegue ou não sustentar o valor dessa premissa... E a verdade é que muito se perde pelo caminho. Assim que a mulher de um "caçador de doadores" surge visada por um esquema legal da empresa, que lhe rouba quatro décadas de vida (provocando o seu envelhecimento instantâneo), passamos de uma proposta madura de ficção científica para um registo único de thriller pró-forma, com uma série de reviravoltas, raptos e perseguições, que mirram a parte nutritiva do argumento.

Tal como muitas produções contemporâneas que vão diretamente para as plataformas de streaming, assumindo um caráter de ficção televisiva de prestígio, Paradise sofre de anonimato de realização. É um filme "sem rugas", visualmente adequado à sua abordagem, mas um pouco neutro e raso na dimensão dramática, senão mesmo falho na construção de personagens. Estas limitam-se ao molde da ação e as suas mudanças de atitude não têm muito que ver com complexidade psicológica - é mais o xadrez do momento.

Aqui e acolá levantam-se questões interessantes e pertinentes sobre o sistema capitalista e a ordem social, mas tudo isso vai soando cada vez menos orgânico à medida que as ditas personagens tecem comentários demasiado óbvios sobre o próprio tema do filme, e tudo se encaminha para uma mensagem tosca (porque absolutamente desnecessária) em voz off, com pôr-do-sol em fundo. É frustrante que um filme bem apetrechado de visão científica não seja capaz de ser thriller e sci-fi ao mesmo tempo, sem trocar um pelo outro. Fica apenas a graça de um conceito maldito explorado pela rama.

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