Paixão, culpa, anjos e morte

O horror do aborto clandestino na série «Sem Título» e a paixão em «0 Crime do Padre Amaro» numa exposição de Paula Rego, que amanhã se inaugura no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. Pinturas, desenhos e gravuras envoltos numa pulsão de morte irresistível.
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As pinturas e estudos preparatórios da série O Crime do Padre Amaro, apresentada, em Junho, na Dulwich Picture Gallery, em Londres, e agora no CAM, centram-se, sobretudo, nestas figuras: Amélia e Amaro...

Não vê, ali, naquele quadro: Amaro diz: «Deixa ver, deixa ver, tão bonita que tu estás». Veste-a de Nossa Senhora e beija-a. Ela sente repulsa. Esta tela é isso, mas também tem outras coisas.


Que a levou a tratar este romance de Eça de Queirós, a crítica social ou a questão amorosa?

Foi a paixão. O que acontece com frequência entre um homem e uma mulher: ela perde a identidade para se lhe dedicar de corpo e alma. Adora-o e ele aproveita. Gosta de ter alguém que o admire. Neste caso, era pior, porque ele era padre sem vocação. Mandava-lhe fazer as coisas e ela obedecia.


Essa anulação por parte da mulher acontece ainda hoje?

Espero que não. As mulheres mantêm mais a sua identidade. Não se entregam de uma forma tão excessiva, como capachos feitos  para os homens espezinharem.


Esta paixão dir-se-ia mórbida?

É uma paixão.


A paixão é sempre mórbida, misto de alegria e dor?

Não sei. Às vezes, é bom ser-se outra pessoa, aquilo que esperam de nós. Perdermos a nossa identidade. Outras vezes, não. Amélia é infeliz... Foi feliz durante cinco minutos, mas o preço que pagou foi demasiado alto: a morte.


A inocência, perdeu-a?

Não importa, a morte é pior.


A morte nunca é redentora?

A morte? Redentora? Da morte morre-se. Acaba-se. A minha filosofia não importa. Veja este quadro, O Embaixador de Jesus. Vem no livro. Ele fala por si. Ali está uma menina muito pequenina - que representa a vontade e a identidade de Amélia. Há dois anjos lá em cima. Tudo se reflecte em espelhos. Não vê a mão dele sobre o joelho?, uma carícia dominadora  (risos)...  A outra mão está sobre a cabeça dela a empurrá-la bem para baixo.


Padre Amaro era um homem com poder?

Um poder enorme. Ela gostava dele porque ele era padre.


O domínio nunca sai da esfera de relacionamento entre as pessoas?

É a natureza do homem, gosta de mandar e de ser mandado.
Neste quadro, A Cela, Amaro está sozinho a pensar em Amélia. Quando era pequenino, brincava com as imagens sagradas. Não vê a Nossa Senhora debaixo da cama?


O «debaixo da cama» é a memória de Amaro?

E também uma boneca sagrada com a qual ele brinca. Ele está numa grande solidão, a masturbar-se. Tenho pena do homem, mas não devia aproveitar-se das Nossas Senhoras. Teve uma vida tristíssima: a obediência cega, o medo de ser descoberto, o pavor da vergonha social.

O parto é uma coisa física, do corpo das mulheres

Eça falava de O Crime do Padre Amaro como «uma intriga de clérigos e beatas tramada e murmurada à sombra de uma velha Sé da província portuguesa»…

Fantástico!, mas vejo-o mais como uma história de amor, eterna e triste. Claro, há o lado da crítica social, deliciosa pelo humor e pela humanidade.


Naquele quadro ali, Amélia está a rezar...

De pernas abertas. Está escarranchada na cadeira. É um pouco erótico...


O misticismo e o erotismo fundem-se, por vezes. Certos santos...

Santa Teresa de Ávila, por exemplo... Mas Amélia não é santa, nem há grande transcendência naquela expressão.


Amaro surge neste quadro, embora sendo um homem de poder, extremamente vulnerável e dominado também pelas mulheres.

Chama-se A Mãe. Amaro está quase infantil no meio das mulheres. O domínio feminino é mais subtil. As coisas psicológicas que acontecem nos quadros...


Nunca tentou ser ilustrativa?

Não, tudo foi surgindo no fazer. O quadro é uma coisa formal. A Mãe passou por mil e uma coisas. Só fiquei contente quando pus a concha no meio, o que rebentou com a tela. A concha afasta-os, distancia-os.


É o toque dilacerante...

E Amaro aparece como um elemento sacrificial.


A vulnerabilidade dele surge no espelho?

Está mais viril no espelho. Parece um fauno. Este quadro aqui chama-se O Descanso na Fuga para o Egipto. Os Evangelhos contam que a Sagrada família foi forçada a fugir para evitar o massacre dos inocentes.


O Portugal católico, conservador não está ausente deste quadro.

Não pode deixar de estar presente. Ela é linda, pequenina, contida. Ele está sentado com um ar esgazeado com a criança ao colo. Um anjo. O drama acontece dentro do quadro, mas é tudo a fingir. Há uma versão do livro na qual Amaro mata a criança. Eça fez bem em mudar o texto, entregando-a à abafadora para que ela faça por ele o que ele não conseguiu. Aqui está a Dionísia, a mulher prática, que ajuda com compaixão, a mesma que diz nunca lhe ter morrido nenhuma mulher no parto como Amélia.


É uma mulher cansada, mas com uma expressão de sabedoria.

O modelo foi a minha mulher-a-dias. Uma mulher fabulosa. Já com 80 anos. Aqui vê-se o quarto de Amélia, onde ela morre de parto. O autor fica cá fora, com o padre e o médico. Não entra nos pormenores femininos. Lá dentro acontece o drama. Eu quis entrar. Ao fundo, há uma espécie de nascimento, a ideia de um certo ritual, um elemento vudu. Coisas das mulheres: uma bonequinha no colo, uma espécie de feto, os animais pendurados, o cão, o livro. Mas é tudo a brincar.


O parto tem essa dimensão ritualística?

A avaliar pelas contracções, que surgem momento a momento. Depois há os segredos. Os homens pensam que há mais mistério do que na realidade existe. O parto é uma coisa muito física, do corpo das mulheres. Mas que pode ser transcendente. Pois pode, mas dói tanto...


Hoje já há anestesias... (risos)

Este quadro chama-se In The Wilderness. Esta menina precisa de ajuda, está a rezar, não vê a expressão aflita? Usa um vestido de tafetá escocês, que me custou imenso a desenhar. A história deste quadro passa por aquele vestido.


Nunca sabemos se somos ouvidos, não é?

Há uma solidão muito grande, mas basta podermos rezar. Já é uma forma de ajuda.


Reza para pedir?

Não, para pedir não. Mas não rezo muito. É um ritual que me vem da infância. A Amélia aqui nesta tela é pequena e vejo-a como uma espécie de relicário, que tem dentro dela os santos dos mortos. Lá atrás, está a lutar com a santa, que consegue levantar do chão porque não tem pés. Também a sinto como uma figura necessariamente sacrificial.       
            

Há sempre o lado do martírio?

Algo muito feminino e pertencente a certas culturas.

 
Existe uma denúncia sexista nesta série?

As mulheres são muito violentadas...

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