Quando Murad, de nove anos, teve oportunidade de fugir do Estado Islâmico - o grupo que violou repetidamente a sua mãe e chacinou ou escravizou milhares de pessoas da sua minoria yazidi - hesitou..Tão poderosa foi a doutrinação durante o seu cativeiro de 20 meses no Iraque e na Síria, que o menino disse à mãe que queria ficar no campo onde o Estado Islâmico o havia treinado para matar "infiéis", incluindo o seu próprio povo..Agora, na relativa segurança do território controlado pelos curdos, a mãe de Murad contou à Reuters como se tinha tido de esforçar para convencer o filho - que como outros meninos yazidis estava a ser preparado para o combate -, a fugir com ela e com o irmão mais novo no início deste mês.."Mexeram com o cérebro do meu filho e a maioria das crianças estava a dizer às suas famílias "Vão, nós ficamos"", disse ela, recusando-se a dar o nome. "Até ao último momento antes de sairmos, o meu filho dizia, "Eu não vou com vocês".".Os rapazinhos yazidis parecem fazer parte de planos mais alargados do Estado Islâmico para criar uma nova geração de combatentes leais à ideologia do grupo e acostumados à sua extrema violência. O treino deixa-os frequentemente marcados, mesmo depois de regressarem a casa..O Estado Islâmico, conhecido em árabe pelos seus opositores como Daesh, capturou Murad, a mãe e o irmão em agosto de 2014, na aldeia deles perto da cidade iraquiana de Sinjar. Durante essa ofensiva, o grupo sunita radical massacrou, escravizou e violou milhares de yazidis, os quais eles consideram ser adoradores do diabo..Os Estados Unidos lançaram ataques aéreos contra os militantes em parte para salvar os sobreviventes e, no mês passado, disseram que os ataques contra yazidis, cuja fé combina elementos do cristianismo, do zoroastrismo e do Islão, e contra outros grupos constituem genocídio..Mais de um terço dos cinco mil yazidis capturados em 2014 conseguiram fugir ou ser passados para o exterior, mas os ativistas dizem que ainda há centenas de rapazes detidos..Vestida com uma saia castanha comprida e um véu a condizer, a mãe contou como Murad tinha finalmente concordado em fugir, permitindo que os passadores fizessem escapulir a família por um caminho complicado até um campo de refugiados perto da cidade iraquiana de Duhok, onde eles estão a viver agora..Murad, que vestia uma camisola do clube de futebol espanhol Real Madrid, sentou-se com a mãe no chão de um atrelado espartano no campo de al-Qadiya, girando os polegares e resistindo a responder às perguntas..Combater os infiéis.A mãe de Murad conseguiu ficar com os seus dois filhos durante a maior parte do tempo em que o Estado Islâmico andou com eles às voltas por cidades e vilas do seu "califado", que abrangem as fronteiras do Iraque e da Síria. Estas incluíam as suas capitais efetivas, Mossul e Raqqa, bem como a antiga cidade de Palmira que, desde então, já caiu nas mãos das forças do governo sírio.."Eles estavam a ensinar as crianças a combater e a ir para a guerra para lutar contra os infiéis", disse a mãe, acrescentando que aqueles que deveriam ser mortos incluíam os muçulmanos xiitas, as forças peshmerga do Curdistão iraquiano e da milícia YPG curdo-síria..O Estado Islâmico vestiu os meninos com as mesmas vestes longas que eles usavam e treinou-os no uso de armas e facas. "Eles avaliavam se as crianças tinham aprendido bem a lutar. Depois, o Daesh mostrava às famílias vídeos de matanças. Neles os familiares viam os seus filhos a participar também.".O Estado Islâmico também forçou Murad a orar, estudar o Alcorão e assistir a aulas religiosas extremistas, segundo diz a mãe, que afirmou ter sido espancada, bem como violada por, pelo menos, 14 homens..Ensinados a odiar.Um rapaz de 16 anos, retirado da mesma aldeia a sul de Sinjar relatou um tratamento semelhante. Ele passou dois meses numa escola religiosa onde o Estado Islâmico ensinava a sua ideologia ultrarradical que rotula a maioria dos estrangeiros como infiéis e foi acusado por autoridades muçulmanas superiores."Eles disseram-nos: "Vocês são yazidis e vocês são infiéis. Queremos converter-vos à verdadeira religião para que possam ir para o céu"", contou o adolescente, que quis manter o anonimato e envolveu a cabeça com um lenço, temendo represálias contra o irmão e o pai, ainda sob o domínio do Estado Islâmico..O adolescente disse que foi obrigado a trabalhar numa fábrica com outros rapazes, onde eram explorados ao máximo costurando uniformes militares para os combatentes..Cerca de 750 outras crianças escaparam nos últimos meses, mas continuam desparecidas mais alguns milhares, de acordo com os ativistas yazidis Khairy Ali Ibrahim e Fasel Kate Hasoo, que documentam os crimes contra a sua comunidade..Vinte e cinco crianças que escaparam de campos de treino do Estado Islâmico já passaram, desde então, por Qadiya, a 10 Km a Sul da fronteira com a Turquia, mas apenas seis permanecem, disseram eles. As restantes têm procurado refúgio na Europa, juntando-se à onda de migrantes que fogem dos conflitos em toda a região..A readaptação.A família de Murad fugiu quando o combatente que tinha "comprado" a mãe saiu da casa onde ela e os meninos estavam hospedados para arranjar comida. Depois de terem sido postos em contacto com passadores por um amigo, eles passaram a noite numa casa segura antes de uma viagem de nove horas de mota para território sob o domínio dos curdos sírios..Depois de três noites na cidade de Kobani, na fronteira turca, eles seguiram para o Curdistão iraquiano..Novos problemas esperam os meninos que conseguiram alcançar a segurança relativa, e as suas famílias. A maioria dos yazidis teve que gastar pequenas fortunas com os custos dos passadores para resgatar os seus entes queridos - a família de Murad arranjou 24 mil dólares para levar os três para casa..Muitas famílias fazem pequenos empréstimos junto de parentes e vizinhos que, mais tarde, querem ser reembolsados. As promessas de instituições de caridade e agências governamentais para ajudar a cobrir esses custos falharam, dizem eles..Existem também custos psicológicos..A mãe de Murad afirma poder dizer que os seus filhos ficaram traumatizados com o que passaram..O seu filho mais novo, Emad, de cinco anos, fala pouco, mas joga às escondidas e corre dentro e fora da sala. Murad está claramente mais afetado: raramente sorri, esforça-se para manter contacto com o olhar e está constantemente agitado..O adolescente que foi obrigado a trabalhar em regime de escravatura diz que é suficientemente maduro para afastar de si a brutalidade do Estado Islâmico.."Eu lidava com eles só porque estava com medo, mas agora que estou de volta, sou igual ao que era antes", disse ele. Um primo, porém, admitiu mais tarde que a sua reintegração não tinha sido fácil, recusando-se a entrar em detalhes..Segundo a Fundação Quilliam, um grupo de reflexão anti-extremismo sedeado em Londres, é provável que as crianças introduzidas na ideologia do Estado Islâmico a considerem normal e defendam as suas práticas.."Elas são incapazes de contribuir construtivamente para as suas sociedades porque não desenvolvem a capacidade de socializar", dizia a fundação num relatório, no mês passado..As crianças yazidis em Qadiya precisam de tratamento psicológico regular, o que continua a ser inalcançável, disse o ativista Hasoo.."A maioria dos rapazes tentou implementar as ideias do Daesh depois de ter fugido", disse ele. "Houve casos de crianças que queriam matar um dos seus amigos no campo. Outras repetiam as ações para que tinham sido treinadas.".Com Mahdi Talat, Emily Wither e David Stamp.Jornalistas da Reuters