Os pianos vão ficar órfãos da arte de Alfred Brendel

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Alfred Brendel. O grande pianista toca amanhã na Fundação Gulbenkian. Pela última vez. O seu 2008 tem sido assim: o artista, de 77 anos, faz o último concerto público a 18 de Dezembro, em Viena de Áustria. É o adeus definitivo aos palcos de um dos músicos mais sólidos e estimulantes dos últimos 50 anos

Lisboa é uma das últimas paragens da digressão de despedida do pianista

Quando amanhã se esfumar a ressonância do acorde final de si bemol Maior da última sonata para piano de Franz Schubert, não será apenas o fim de mais um recital de piano no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.

Será, sim, o adeus do público português - que então decerto irromperá em entusiástico aplauso, como das anteriores cinco vezes - a um dos maiores pianistas - ou será antes artistas da música?... - dos últimos (mais de) 50 anos: Alfred Brendel.

A pouco mais de um mês de completar 78 anos, o grande pianista austríaco - e londrino de adopção - está a 19 dias de dizer definitivamente adeus aos palcos, colocando um ponto final numa carreira de praticamente 60 anos: será em Viena de Áustria, na Grande Sala do Musikverein (a mesma onde se realizam os concertos de Ano Novo), a 17 e 18 de Dezembro, com os seus velhos amigos da Filarmónica de Viena - que o nomearam Membro Honorário da orquestra em Setembro de 1998 - e, na direcção, outro confidente de muitas partituras, mormente mozartianas: Sir Charles Mackerras, 83 anos.

Largamente tido como protótipo do artista-intelectual ou artista-pensador, Brendel está (sempre esteve) nos antípodas do artista espalhafatoso e atreito à exposição mediática. Para ele, é função do intérprete buscar e extrair até a matéria mais recôndita que se descobre nas obras e perseverar com o instrumento até lhe conseguir dar a mais condizente e fidedigna tradução sonora. Nada mais distante, portanto, de uma qualquer atitude contemporizadora que vê na interpretação uma síntese de vontades, um compromisso entre autor e intérprete, logo aberta a concessões mútuas, tantas vezes desvirtuadora do texto e do discurso musical.

A sua atitude foi, antes e sempre, a de ligar a actividade de pianista à responsabilidade perante os compositores e as obras, aliando sinceridade emocional, seriedade artística e integridade intelectual.

Fruto do seu intenso labor intelectual sobre as obras e da correspondentemente aturada tradução sonora desses "achados", o pianista logra libertar- -se quando em recital, abrindo-se à espontaneidade, aos imprevistos da actuação ao vivo, no momento, diante de público. E é aí que está a sua grandeza e a verdadeira essência da sua arte: a recusa permanente de uma qualquer secura e de um discurso pretensa ou supostamente fechado, acabado. Com Brendel, em recital, nunca se ouve "como no disco". E, no entanto, numa e noutra instâncias moram as mesmas sinceridade, seriedade e integridade de que falámos. É antes a sensibilidade e a reacção ao momento do artista que operam pequenos matizes, pequenas variações, porque é assim que o seu espírito entende a obra nesse instante. Por tudo isto, talvez, lhe colocam amiúde o título (ou etiqueta) de "o pensador sensível".

E, no entanto, que múltiplas facetas nos apresenta Brendel, facetas que precipitadamente julgaríamos afastadas de uma personalidade destas!

O pianista-homem público fez públicas outras dedicações paralelas. A literatura, antes de mais: Brendel assinou já livros de reflexão sobre a música, sobre o fenómeno da música clássica e - surpreendam-se! - de livros de poesia, género no qual cultiva um estilo assumidamente contemporâneo, com um pendor característico para o humor burlesco ou grotesco.

Mas Brendel, homem culto, literato, também gosta de comentar quadros de autores famosos e essa sua faceta "pedagógica" reflecte-se e faz-nos regressar à música: num DVD, Brendel guia os nossos passos através dos dois primeiros anos (Suíça e Itália) da colecção Anos de Peregrinação, de Liszt, explicando título, génese, conteúdo de cada uma das peças suas constituintes.

Uma visita ao seu site (alfredbrendel.com) é, aliás, altamente reveladora da sua personalidade: o despretensiosismo impera, a auto-exaltação está distante, o panegírico ausente.

Em vez disso, apenas uma auto-biografia organizada em doze estações, uma fotografia para cada uma, textos curtos, o último intitulado simplesmente The future...

Nos discos, à listagem exaustiva (limitando-se às edições ainda em catálogo: 70 CD no total), apõe, diríamos quase cortêsmente, uma selecção pessoal do seu legado sonoro. Indica igualmente os seus escritos, inclui uma página dos citados comentários a quadros de grandes mestres e "expõe-se" em 19 fotografias. Revelador, hein?

O Alfred Brendel nascido a 5 de Janeiro de 1931 na pequena comunidade de Wiesenberg, numa zona germanófona do Norte da Morávia (hoje, parte da República Checa), habituou--se desde criança a andar de cidade em cidade. Sem saber que, mais tarde, faria disso vida, estendendo o âmbito das "andanças" à escala mundial. Quando amanhã se esfumar o acorde de si bemol M, Brendel terá feito, para nós portugueses, a última viagem na história da interpretação pianística ao vivo...

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