Os museus e os antiquários do séc. XXI

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Embora a palavra antiquário designe frequentemente alguém que se dedica à compra e venda de objectos antigos, esta noção peca por defeito uma vez que o verdadeiro antiquário é também um estudioso dos objectos do passado, como sempre o fez ao longo da história, promovendo a divulgação da arte.

Antiquariato refere-se ao trabalho que se vem desenvolvendo desde a Antiguidade, com abordagem erudita que inclui categorização, sistematização e levantamento de fontes. Este papel foi fundamental para o desenvolvimento metodológico da história e da arqueologia.

Embora o seu papel seja já identificado no Egito, Grécia e Roma antiga, desenvolveu-se na Europa a partir da  Idade Média - pela mão de governantes e aristocratas. Este crescimento intensificou-se no século XIV, na Itália renascentista e espalhou-se pela Europa (séc. XV a XVII).

Durante a idade Moderna iniciou-se uma nova era com o exotismo estranho ao universo europeu que nos foi trazido pelos descobrimentos. O estudo da história, cultura, hábitos e fisionomia desses povos longínquos entrou em diálogo com a narrativa europeia.

É neste período que se afirma o colecionismo. Aparecem espaços destinados a tertúlias e ao estudo/comércio de antiguidades, possibilitando a convivência entre cortes principescas e famílias burguesas em ascensão económica. Surgem galerias de arte e gabinetes de curiosidades, locais privilegiados que acumulam objetos curiosos, raros e belos, onde às coleções de natureza arqueológica, se vão juntar objectos relacionados com as Descobertas e, mais tarde, com as conquistas napoleônicas.

Em 1565 Samuel von Quiccheberg dividia "o museu ideal" em três partes: Naturalia (elementos da natureza) e Artificialia (objectos criados/modificados pelo homem); Antiquitas e História (antiguidades clássicas) e Artes.

A partir do século XVIII o antiquário europeu mostra menor apetência pelas antiguidades clássicas, assumindo preferência pelas relíquias locais, com um carater mais nacionalista.

Tudo mudou no século XX. O antiquário que ao longo dos séculos foi local de encontro, de produção e divulgação de pesquisa científica, foi desaparecendo paulatinamente. As suas práticas foram incorporadas nas disciplinas de estudos históricos e clássicos entretanto criadas, passando a palavra antiquário a estar quase invariavelmente associada a comerciante de objetos antigos.

Esta apatia leva a que a herança antiquária seja por vezes desconsiderada pelos historiadores, entendida como uma forma primária do conhecimento histórico, com poucas bases científicas que a sustentem. Acusam os antiquários de não se aproximarem da "verdadeira" história, assumindo o gosto pelos objetos com um entusiasmo por vezes patético e desprovido de sentido.

Embora a atitude seja sem dúvida mais sensorial, por vezes com algum carater emocional, baseia-se na experiência, ao passarem centenas de peças pelas mãos, contrariamente aos historiadores, cuja abordagem é mais teórica, sustentada no conhecimento científico. É importante entender a história construída através do manuseamento dos objectos do passado e a história narrada pela escrita.

Se o conhecimento "científico" é da maior importância, não menos relevante é a experiência que se adquire com o olhar, o tato e o "feeling". Até porque os grandes falsificadores utilizam técnicas e materiais congruentes com as épocas de fabrico.

É como o médico. Para acertar no diagnóstico, em certas situações, não basta ter conhecimentos teóricos. É fundamental a experiência clínica, ter convivido com situações idênticas.

Assim, é essencial existir uma relação salutar e sinérgica entre museus, historiadores e antiquários que promovam a arte e o combate às falsificações.

O antiquário do século XXI tem de voltar à postura dinâmica anterior ao século XX, não se limitando a comprar e vender relíquias. Deve fazer as suas próprias investigações, partilhar conhecimentos, participar em estudos em parceria com instituições ou museus. Em Portugal já existem alguns antiquários com estas características.

Se, para os antiquários os museus são essenciais, não menos verdade é que também o são os antiquários para os museus.

Os museus são uma fonte inesgotável de conhecimento e contribuem de forma inequívoca para alargar o saber dos antiquários, quer pelas exposições e conferências que promovem ou pelas suas publicações, quer pela troca de conhecimentos com conservadores e os historiadores.

E acabam por contribuir para a venda de antiguidades, de forma indireta. Quantas vezes clientes são tentados a comprar um objecto porque viram um idêntico no museu.

Mas os antiquários também são muito importantes para os museus. Por um lado, estes organismos a eles recorrem frequentemente para enriquecer as suas coleções, acabando por ser os grandes fornecedores, na aquisição ou na cedência peças para exposições temporárias. Por outro lado, participam frequentemente em estudos científicos conjuntos sobre peças ou materiais que os compõem.

A participação em feiras de antiguidades e arte assume maior relevância para a visibilidade da nossa atividade. E nesse âmbito participamos desde há alguns anos na Bienal de Paris, onde são exibidas peças provenientes dos que foram os domínios portugueses em Africa e na Asia, relacionadas com o cruzamento de culturas. A aceitação ultrapassou as expectativas. O reflexo tem sido aparecerem na nossa galeria referindo que as nossas explicações foram o mote para visitar Portugal, melhor conhecer o país e a sua história. Esta forma de divulgação é muito interessante porque, sendo personalizada, acaba por ter um impacto mais imediato do que a simples visita aos museus.

Destas deambulações por terras gaulesas resultaram em novas oportunidades, como o pedido de empréstimo de peças de faiança lusa para uma exposição no Museu Guimet, bem como o convite para participar numa conferência na Bélgica sobre o tema. Foi ainda solicitada a nossa coleção de arte de fusão para a exposição Éxchanges Artistiques sur la Route des Indes au Temps de Montaigne no Museu de Bordéus.

Mas, o antiquário do século XXI deve ir mais longe, preocupando-se em transmitir os conhecimentos, quer no contacto direto com os clientes, quer em conferências e debates, cooperando com cursos relacionados com história de arte ou ainda disponibilizando estágios a estudantes. Nesta vertente, temos colaborado com os cursos de pós-graduação em Mercados de Arte (I. História da Arte da FCSH-UNL) através de aulas ministradas na Galeria e estágios, não só a estes alunos, mas também aos alunos de História da Arte da UL e de Museologia da ESBAL.

É assim evidente que antiquários e museus concorrem sinergicamente na procura, autenticação e promoção das antiguidades, bem como na divulgação da arte portuguesa, sendo da maior importância consolidar esta parceria. Mário Roque

Antiquário, médico e colecionador

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